A moça e o motorista

A moça e o motorista

Quando seu Genésio parou o táxi para a senhora subir, chovia muito em São Paulo, daquelas chuvas que criam caso com prefeitos e moradores e pedestres e bueiros, todo mundo vai para a televisão reclamar e o secretário da saúde tal, fica ali, em frente ao microfone conversando com o champignon, o senhor está me ouvindo, o pessoal da vila Talarico está reclamando da falta de saneamento básico, desculpe caro amigo mas essa vila está localizada sobre mananciais, estamos providenciando a transferência dos favelados e no ano seguinte, no verão, você vê a mesma coisa no programa “o povo é quem manda”; o seu Genésio não suportava mais trocar tanta mola do carro, que Iptu eles bem que sabem cobrar direitinho né mermo, seu Genésio é motorista em São Paulo há quarenta anos, veio para a capital ainda pequeno, nasceu em Tietê, carrega nos erres, faz parte de uma cooperativa de motoristas, é disciplinado, paciente, bom coração, um tanto fuxiqueiro, que a dona Mercedes fez uma corrida até um apart-hotel, aí tem meu amigo, aí tem, leve cacoete que o faz entortar o pescoço e tirar um cisco imaginário do olho quando fica nervoso, empreendedor, enquanto não arranjou um telefone para o ponto de taxi não sossegou, que os fregueses ficam mais bem atendidos, irrita-se com gente lerda, que custava o Arlindo atender ao telefone, tá o primeiro da fila, esse sol tá dando no bestunto dele, que lerrdeza! Seu Genésio tem muita prática do seu ofício, como ele diz, mora em Guarulhos, levanta bem cedo, é o primeiro da fila na padaria, pãozinho estalando de quente, prepara seu farnel, sabe que a palavra mais atual é lanche, mas prefere farnel, o pai dizia, vamos Genésio, pega o farnel e ele pegava a marmita enrolada em pano xadrez cheirando à goma, que a mãe era muito prestimosa e então corria até a porteira que rangia com saudade sem explicação enquanto o pai passava as mãos por seus cabelos, gesto apressado onde o amor grudava que nem carrapicho; ele então fazia um aceno desenxabido e miudinho enquanto o pai montava o cavalo baio e ia sumindo, sumindo na estrada meio encantada; Genésio, então, rodava seu pião pelo chão de cimento encerado da cozinha e corria pelo vale com sua capa de cavaleiro herói até que a coruja amarela viesse se empoleirar no beiral da casa avisando que era, já, noitinha; se a capital não estava nos seus planos futuros, muito menos, sua mulher Tainá, que foi se achegando, cabelos cheirando à cravo, ossos largos e incipiente barriga, olhos que se perdiam na face redonda de sorriso malicioso; foi mais pelo que se lembrava da mãe tão prestimosa e caprichosa na casa que recendia à cera e do pai que enrolava o fumo quando a noite chegava, as rolinhas fechavam os olhinhos enquanto as azáleas cochichavam baixinho e Etelvina e Geraldo se olhavam com ternura muito do antigamente, que se casou com Tainá. Pensou que sua vida poderia ser igualzinha, foi quando seu Genésio também constatou que nada é igual nessa vida, muito, muito menos, duas pessoas; e eis que sua existência foi se tornando mirrada aos poucos, tristonha aos poucos, humilhante aos poucos, rude como o bater de porta em tempestade, como quando via as roupas dançando loucamente no varal em tardes de inverno, talvez, quando ouviu pela primeira vez o não pise aí que limpei agora mesmo, olha o pé na mesa, olha que o Carmo sempre arranja alguma coisa pra fazer no domingo, não fica aí em frente a televisão, você precisa ser mais ambicioso homem, não tô aqui pra passar fome, na casa de meus pais eu tinha de tudo, de tudo, ele tá se vangloriando à toa,num levanta nem o pé, ou quando sua toalha nunca estava no banheiro e saia pelo corredor atarantado, ai assim também não dá Tainá, eu aquii, pelado, com os balangandãs de fora, nunca acho minha toalha e a resposta vinha num zumbido de bala de fuzil, se você não largasse no quarto Genésio, sua mãe não te ensinou educação, já está no varal e de lá não sai, não tira outra limpa que já estão todas empilhadas e essa semana não passo mais roupa, ele olhava ressentido e confuso a pilha de roupa separada em cores e dobradas com cuidado de quartel e se enxugava com a camiseta velha. Filhos não vieram desse relacionamento tão asséptico que filhos se faz em meio a um clima cheio de odores e de lençóis amarfanhados, sem muita disciplina, quando a vida joga os travesseiros pelo ar. Tainá não era disso, já era entrada em anos quando se casou com Genésio, preferia ver areadas suas panelas que reluziam ao sol da manhã, enfileiradas sobre uma tábua no quintal, soldados do bem, seus móveis reluzentes onde dava até para se ver a cara meio retorcida, suas pilhas de toalhas separadas por cores e tamanhos, os armários recobertos por plástico por dentro com margaridas vermelhas que, do miolo amarelo, não fui capaz de encontrar, porta-pão estampado de margaridas, porta-botijão estampado de margaridas, porta–manteiga estampada com margaridas menores, ímãs que tomavam toda a frente da geladeira e que Genésio teimava em derrubar, olha lá em Genésio você já me quebrou dois patinhos, é melhor você me pedir o que quer, com essa sua mão de garra, acaba derrubando tudo, você é mesmo desastrado, home, o encolhimento, acidez e limite de sua existência o fizeram comprar uma televisão pequena e colocá-la no quartinho dos fundos, sentado numa cama velha que, vez em quando, lhe cutucava as nádegas com sadismo, onde assistia ao jogo do Palmeiras, sua única alegria aos domingos. Comia um sanduíche de carne louca e uma cerveja, nesse dia, Tainá ia para o culto e se encontrava com as amigas do bairro e foi num desses encontros que foi dito à ela que Genésio se embeiçara por uma tal de Lucimara, maranhense abusada que fora vista pedindo carona para seu Genésio e foi tanto o falatório, que dona Tainá decidiu que iria até o canal de televisão para pedir ajuda e saber, através e programa “eu te conheço de algum lugar,” se o marido a enganava. Entre aturdido, envergonhado e curioso, seu Genésio foi levado ao programa para confirmar as suspeitas; haviam seguido seus passos durante um dia, logo quando deu a tal carona até o centro para a dona Lucimara, foi confirmado o suposto encontro, seu cacoete piorou e provocou o riso das expectadoras, dona Tainá ficou uma fera, ele passou a dormir sempre no quartinho dos fundos e foi objeto de piadas dos colegas, no ponto de táxi, aí em Genésio pulando sua cerquinha, burro velho, capim novo hein cumpadre e de nada adiantou suas explicações de que, sim, dera uma carona para dona Lucimara, mas foi só até a rodoviária do Tietê, nem pôde entrar na estação, que os motoristas locais não deixariam, ali era uma bruta máfia. E assim, no dia seguinte ao tal vexame, entre pensativo e infeliz, pano molhado sujo e espremido em cima de tanque frio, parou o carro naquela manhã chuvosa para que a senhora subisse, a senhora vai para onde, o senhor siga para o cemitério da Consolação, viúva pensou e ainda moça, nossa. que brancura, os olhos azuis estavam cobertos por um véu acinzentado, engraçado, não se usa mais véu quando morre alguém por luto, estar de luto, diziam, nem se usa mais “esses respeitos”, vez em quando a olhava pelo vidro do retrovisor, o rosto dela continuava virado para o lado da rua, belo perfil, parece rosto de princesa, cachos de cabelo loiro caiam-lhe pelos ombros. Era franzina e a cor preta do tailheur, o chapéu e as luvas pretas a faziam parecer menor, a senhora tem algum itinerário preferido, ela o olha meio que surpresa, também pelo espelho, o senhor faça o que achar melhor que itinerário preferido todos nós temos, precisa é saber encontrá-los, recosta-se no assento, leve contração da boca miúda, será que entendi um sorriso, hoje em dia a gente tem que ficar no lugar certo, nada de dar confiança pra passageiro, inicia uma prosa meio boba, tempo ruim, trânsito ruim e de repente, sem mais nem menos, sem mais aquela, meio que aturdido e sem poder se conter, surpreende-se contando sobre Tainá, de como é caprichosa com a casa, mas tem pouco interesse por ele, fica ali como uma sombra, ou podia ser vassoura velha, cúpula de abat-jour em porão empoeirado, ou daqueles robôs que obedecem ordens a senhora já viu, moleque de recados, office-boy, banco, tudo, menos um marido, companheiro, um soluço seco corta sua voz, enxuga os olhos com a manga da camisa, ai meu Jesus que é que é isso, vê mãe Etelvina e o pai Geraldo sentados na varanda, mãos de hera de tão entrelaçadas, manhãs de sol quando ela lhe trazia um café e bolinhos de chuva, pra requentá as força, meu veio; a moça ouve em silencio e lhe responde baixinho tem que haver coragem para mudar, conheço, conheço quem te pode ajudar, digo, esse seu desalento, aos poucos, e você poderá descansar, descansar, meu amigo; um sino toca ao longe, pombas brancas voam sobre a rua, nossa que estranho nunca vi bando de pomba branca na cidade, sente uma paz nunca dantes observada, o carro desliza macio pela rua da Consolação, credo, com esse trânsito todo, falá a verdade, como tô guiando bem, ela sorri e acena com a mão, pode parar aqui na porta do cemitério mesmo, a senhora vai visitar alguém, sim, venho todas as tardes, vez em quando trago alguém, para ajudar compreende, compreende, compreende o que moça, que a tarde tá ficando cinza, tô com frio moça, essa névoa em maio não é normal moça, esse frio deixe que eu lhe ajude e lhe toma o braço, sua mão já sem a luva é quase uma pluma, tão branca, entram pelo portão do cemitério e a mão dele mão se agarra à dela igualzinho a mãe e o pai, igualzinho, tão entrelaçadas, tão juntas, uma ternura comprida lhe sobe pela garganta, se enrosca nas suas orelhas seu nariz, seus olhos, venha, venha, é só me acompanhar ela tem jeito para tudo, compreende, para tudo, ele a segue pelas alamedas compridas, anjos dos túmulos batem as asas devagar, tão devagar, estendem os braços com delicadeza, as vestes compridas e brancas não chegam a roçar o chão. uma névoa clara cobre a cidade, que sossego meu bom Deus, que sossego. que sossego.... O carro foi encontrado dias depois a porta aberta, a polícia descartou roubo, furto seguido de roubo, roubo seguido de furto, vingança e outros motivos básicos da morte de alguém em São Paulo. Ninguém viu Genésio entrar no cemitério, apenas um indigente que dormia sob um túmulo alegou ter visto um homem acompanhado de uma moça, jovem ainda, mas demorou tanto a explicar que o policial informou ao repórter que um quase meliante viu alguém adentrar ao recinto acompanhado de outro indivíduo, seriam ladrões de túmulos indaga o repórter, certa parecença com texugo, não soubemos informar, eis que o indivíduo evadiu-se; Tainá voltou ao programa de televisão, agora com um crachá sobre o peito onde se lia, Genésio, marido extremoso, rg tal fone tal, se você o encontrar, ligar para Tainá, telefone tal, ou para o ponto de táxi tal. Os motoristas mais antigos no tal ponto de táxi, ainda se lembram desse caso.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 15/09/2012
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