A praça e a lua cheia

A praça e a lua cheia

No ônibus, voltando para casa, foi quando o viu pela primeira vez, ele lhe sorriu, ela não correspondeu, irritou-se com sua constância em olhar para trás, meio mal-ajambrado, que cretino, bobalhão, continuava a virar o rosto acintosamente, ele lhe sorria e parecia não ver seu descaso, daquelas pessoas tão seguras, pés de âncora, sem desprezo ou ódio por si mesmas, vão vivendo cada dia e agradecem com simplicidade. E agora o via novamente, na praça, anos depois, o caminhar sinuoso, ele lhe mandou um oi manso, ao sol da tarde viu seus cabelos com tufos de prata, o jeito tranqüilo de andar e lhe perguntou curiosa se era o moço do ônibus: - Você é o moço do ônibus, ele levantou o polegar assentindo e continuou seu passo, passava por ela com um meio sorriso no rosto moreno. Um dia se falaram e contaram coisas, que ele tinha uma família e ela estava separada, foi feliz com um companheiro, está sem emprego, é voluntária numa creche, ele fala baixo, parece sossegado, diz-lhe de como sonhou com ela, como sabia seu endereço e a acompanhava com os olhos gulosos, quando passava de manhã para a caminhada diária. E, por vaidade, solidão ou pressa em ser feliz, más conselheiras, diria a avó, ela se deixou levar pelas noites mornas onde a lua surgia com graça, as crianças deixavam a escola em bandos irrefletidos e felizes e a mão dele tocava a sua com ternura, quando passava por ela na praça, caminhando. Assim, seu olhar se tornou mais brilhante, ria de coisas simples, se ajeitava no espelho com faceirice já suspeitada, seu desejo veio à tona, maré alta em lua cheia. Aguardava o cair da tarde e a mão morena que segurava a sua com firmeza quando por ela passava, mão buliçosa que a tocava, quando permitido. E por vezes, mãos e bocas se tocavam, a paixão voava pela noite e a lua sorria. Se os mundos em que viviam eram tão diferentes, nem sentia ou queria ver, que a felicidade se cansa facilmente e disso tinha medo. Em alguns dias ele não aparecia, em alguns outros ela o via e se acomodou nesse arremedo de amor mal cozido, sorvendo dessa água, como os cervos que vão beber à beira do lago quase seco, onde o leão os espreita escondido no capim amarelado; eis que um dia, ele lhe pergunta se estivera em sua casa a procurar por ele, criando assim, situação de desconforto. De início ferida, mais tarde irritada, tarde, tarde, vento a favor, sentiu o cheiro do leão que a emboscara e correu pelos prados, meio ferida e chorando. Nunca entendeu o sentido da desconfiança, que explicar e jurar sua inocência seria inútil, já não falavam línguas iguais, afastou-se tristonha, ele a acusou de estar com medo, nunca soube a verdade. Foi aconselhada a não mais vê-lo, um cafajeste, queria fazer cartaz às suas custas, deve ser “um galinha”, faça o cooper em outro horário, não dê mais confiança, ele que se entenda com a mulher, colocar você no meio, por aí foi. Não o viu mais; usou a razão, a lógica, o discernimento, o bom senso, a temperança, a força, a disciplina, o orgulho, a racionalidade; a dignidade ficou preservada, faz hoje o cooper mais cedo quando os pássaros ainda estão entretidos em seus afazeres, as crianças ainda estão aprendendo a escrever as letras primeiras. Vez em quando, só vez em quando, quando a lua cheia teima em surgir mais cedo e as sombras descem sobre a praça, ela sente de leve uma mão morena que segura a sua com ternura e some nas sombras, enquanto a paixão a olha meio atarantada.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 15/09/2012
Código do texto: T3882707
Classificação de conteúdo: seguro