DESVÃOS

- Por que só agora?

- Acho que só agora é que podia ser.

- Por que você não me falou de tudo isso antes, bem antes?

- Eu falei. Eu gritei para você por várias vezes. Só que você, naquela época, não tinha sensibilidade para ouvir os meus gritos. Ou eu não tinha como me fazer entender.

- Na época tinha o Raul.

- Tinha o Raul, depois teve o Vítor, depois o Carlos, o Augusto e depois aquele bode todo com o Paulo, que pulou do apartamento.

- O Paulo era completamente maluco. Pirou naquela noite e fez aquela besteira...

- Qualquer um faria. Por você, até um estádio inteiro pularia daquela sacada para fazer uma ceninha.

- É, uma ceninha que custou a vida daquele puto.

- Você ficou arrasada.

- Fiquei. Purguei essa culpa por quase dez anos, mas aí passou. Tudo passa.

- Nem tudo.

- É, nem tudo. O que você sentia por mim não passou.

- O que eu sinto por você só veio se desenvolvendo com o tempo, veio se tornando uma coisa mais limpa, mais clara com a idade que também veio chegando.

- Você nunca me esqueceu?

- Nem um dia. Segui todos os passos que você deu na vida. Colecionei suas viagens, relacionei suas aventuras pelo mundo, contei seus casamentos que não deram em nada, me vinguei de você cada vez que um marido te deixava na rua da amargura.

- Todos uns safados, filhos da puta sem caráter.

- Sei até das vezes que você fez os abortos.

- Filhos nunca estiveram nos meus projetos de vida.

- Sei: você muito libertária.

- Só achava que nunca teria competência para ser mãe.

- Pelo visto, nem para ser nada. Hoje você está aí: sem trabalho, sem filhos, morando com aquele velho que te sustenta e tem idade para ser teu avô.

- A vida não alivia para ninguém. Não sou mais uma menina, perdi o viço, a juventude, a carne dura. Foi o que eu ainda pude arranjar.

- E eu podia ter te dado o mundo.

- É, mas agora só pode me dar umas horinhas de prazer.

Ela o puxou novamente para a cama e ele a amou, mais uma vez naquela tarde, com uma fome de muitos anos. Amou como se nunca tivesse amado uma mulher na vida. Como se jamais fosse amar outra. Depois pôs sobre a mesinha o suficiente para um táxi e uma lembrança barata e despediu-se para nunca mais.

Marcos Fábio
Enviado por Marcos Fábio em 12/09/2012
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