Dona Coca e o apagão

Dona Coca e o apagão

Dona Coca apaga a luz para fazer economia, é cumpridora dos seus deveres de cidadã mesmo detestando o governo atual, só falta andar de charrete, apagão, apagão, nome idiota, um governo que nem olha o que faz, tanto rio no Brasil e não há energia, que vergonha, dirige-se para a cozinha para fazer o chá, a perna direita queima por dentro, logo, logo começa aquela dor insuportável por todo o corpo; a hidroginástica não está adiantando nada, aquela água fria, cansei de reclamar com aquela professora, tão sonsa, dona Coca, o nome é Coralina de Azevedo e Castro, nome de solteira, faz questão de mencionar. Por obra do destino ou da própria dona Coca, quem saberá, foi perdendo a fortuna e a bonita casa da rua Albuquerque Lins, tantas tardes ensolaradas nos idos dos cinqüenta, o caramanchão coberto por primaveras onde ouviu Felisberto assobiar Hipócrita pela primeira vez, gente bonita, não essa feiura de hoje, todo mundo de jeans e tênis, sem classe, outros tempos, onde havia gente bem-nascida; não sabe bem como perdeu quase tudo para um marido de olhar prisco, moreno de pele e alma, começou tantos negócios: - Que agora essas terras vão se tornar rentáveis Coca, vale a pena investir, devolvo tudo assim que vierem os primeiros lucros, as terras não se tornaram rentáveis, os primeiros lucros, nem pensar, o pai de Coca sacudia a cabeça desacorçoado, dona Leontina, a sogra, sofria com enxaquecas intermináveis, não podia ver a luz do sol. Coca era filha única, tão mimada, diziam, tão cheia de vontades, quando o pai se for, quem vai cuidar dela, feinha, que napa hein, o tal do Felisberto Marcondes Sá, casou foi com a mala, além do mais, que gênio, dizem que maltrata muito os empregados, não gosta de animais, nunca teve filhos, três itens básicos para uma boa alma, que o povo se diz sábio, faltava um quarto item, nunca mencionado. Coca não gostava de sexo, detestava sexo, sexo era obrigação para ver a continuidade da prole, como não tinha prole, não havia necessidade de continuidade, poderia ser por isso que Felisberto Marcondes Sá sumiu. ninguém soube informar se foi a desculpa clichê de ir comprar cigarros, se já tinha cigarro nos bolsos e estava só esperando uma chance para escafeder-se, ou, se não fumava mas pensava em fugir, dia e noite. Fato é que, numa tarde onde a cotovia cantava não se sabe onde, não mais retornou ao dito aconchego do lar. Coca se desesperou, o pai mandou procurar o genro em todos os lugares possíveis e impossíveis, lá pelos lados da Luz, nas quebradas da Penha, nos matagais de Vila Carrão; nada. Nem em hospitais, irmandades, fraternidades ou conchavos; nada. Feliberto desapareceu no ar como as rodelinhas de fumaça do charuto do Senhor Azevedo e Castro, em círculos da malícia, diziam que sucumbira aos encantos de uma balconista do Mappin e que fora visto para os lados da Freguesia do Ó, fatos esses, nunca confirmados. E Coralina ficou só na imensa casa da Albuquerque Lins quando sua mãe faleceu em meio a uma crise interminável de enxaqueca ao ver a filha tornar-se, Deus me perdoe, uma mulher largada e seu pai, em meio a um ataque fulminante do coração, também em razão do, Deus me perdoe, uma mulher largada. Nos idos dos cinqüenta, o que não era dito, era sentido no corpo, no terceiro milênio, o que não é dito também é sentido no corpo, só que tem nome científico de somatização e voltemos à dona Coca. Sua pouca experiência em finanças, advogados astutos e vários planos econômicos, eventos comuns na terra Brasilis, minguaram sua herança, foi indo, foi indo, ficou só com uma casinha na rua Martim Francisco, espremida entre dois prédios, onde moravam tias por parte de mãe, a casa com caramanchão de primaveras, onde ouviu Felisberto assobiar Hipócrita pela primeira vez, foi vendida à uma construtora com relativa pressa, as tias também deixaram a casinha com relativa pressa, que Coca estava acostumada a solicitar pedidos com certa veemência, o gosto de quem se acostumara a dar ordens fora mantido, assim como seus cabelos, que ainda eram impecavelmente entrincheirados em uma rede fininha, quase transparente, seus lenços de cambraia com renda francesa que ainda eram usados nas gripes, que tenho horror desses lenços de papel, tão sem classe, seus vestidos de mohair e flanela ingleses, também usados com certa admiração pelos passantes:- Onde será que essa loqueta achou essa fazenda, olha que modelo antigo parece a Maria Picareta, olhares esses, que Coca entende como de admiração ao seu traje com sapatos combinando, meio remendados com toda discrição quando não havia ninguém no sapateiro - para desespero do Seu Laércio:- olha dona Coca, aqui num dá mais, já fiz todo os remendo possiver, tá certo que é sapato das França, da França, da França, seu Laércio, é um pais, um país, tá, tá, mais num dá mais, já deu o que tinha que dá, ali na Barão de Tatuí tem um sapato bom à beça, sola forte, güenta qualquer calçada, o senhor me devolva o sapato, quando eu quiser informações sobre sapatarias, eu pergunto, tá certo dona, (metida, num tem um gato pra puxar pelo rabo, se fazendo de madame, muié besta).

Tomando o chá, dona Coca está sentada vergada para a frente as pernas meio abertas, se minha mãe me visse assim tão mal sentada, endireite as costas menina, um sorriso lhe escapa pelos lábios finos. Não gosta de se lembrar muito do passado, que o que foi, foi; aos que lhe perguntam algo, esclarece de que família veio de grandes fazendeiros de Campinas, dos tropeiros, mas que não tinha nada a ver com tropeiros, meu tataravô era um bandeirante famoso, traficante de índios nem pensar, que idéia ridícula, era dono de terras herdadas, presentes do rei de Portugal, não se lembrava qual. Toma o chá em golinhos curtos olha as duas xícaras inglesas que sobraram do aparelho que o pai trouxera de Londres, estão desbeiçadas, também não recebo ninguém mesmo, nem me interessa, meus contemporâneos já se foram quase todos, essa gentinha desse bairro decadente, nem pensar, prefiro a companhia do meu gato. Alguém toca a campainha, dona Coca meio que corre, mas não dá o braço a torcer para si mesma, vamos com calma parece que vou tirar o pai da forca e adentra ao recinto o senhor Güilhelmo Fontana, vizinho, dono da casa de quilo da esquina, italiano, filho de imigrantes, paciencioso, quietarrão e tranqüilo, tranqüilidade essa que dona Coca entende ser burrice, em assim sendo, num rasgo de benemerência e misericórdia com os mais humildes, dona Coca o convida para tomar chá, religiosamente, todas as quintas feiras. Comentam sobre o tempo, os preços altos, dona Coca elabora esses comentários com certa irritação, em tempos idos nunca se preocupou com preços altos, o senhor Fontana fala sobre o preço das verduras e sobre o apagão e dona Coca recorda-se dos lustres que faiscavam nas noites de festa na casa da Albuquerque Lins, luzes se apagando nos aposentos da vida. Eis que escurece, dona Coca apressa-se em acender a luz que não fica bem, nem é de bom tom permanecer às escuras com um visitante de nível inferior. Até porque ele poderia imaginar coisas, ela nem é tão velha assim; mas, como não temos controle sobre muitos fatos da vida e pensamos que temos, nesse exato momento, o sexo, um horror necessário para dona Coca, ainda continua escondido atrás do armário, espremido; e nesse ínterim, verifica-se que a luz não se acende, dona Coca se assusta no meio do breu que vai se formando na sala, lembra-se de não ter cumprido a meta de economia de energia elétrica, meu banho quente demorado, o senhor Fontana se atrapalha com o vaso chinês com um dragão que o olha meio desconfiado e dona Coca entende a mão calosa no seu quadril, como um convite; nesse preciso instante, o tal sexo espremido atrás do armário, encolhe a barriga estufada de prazer reprimido, dá um jeito e sai feito louco pela casa. Após vinte longos minutos, quando dona Coca com voz sumida resolve dizer vou procurar uma vela, a luz retorna, o senhor Fontana encontra-se bastante desalinhado, os cabelos esvoaçando, segurando a calça com uma mão, a cinta com a outra e procurando o sapato que foi cair embaixo do aparador, dona Coca perdeu a rede quase transparente que lhe entrincheirava os cabelos e que também esvoaçam assustados e a saia ficou presa atrás, na calça de rendas, fazendo um repuxo. Está alegrinha, alegrinha. Os cabelos continuam esvoaçando ao vento sem a bendita rede quase transparente, a rua Martim Francisco tem muito charme, atmosfera, o açougueiro é um bom homem, passa a mão pela cabeça das crianças, que graça, tem testa de inteligente, a artrose está bem melhor. Bendito apagão. Adora o PSDB.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 12/09/2012
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