Belisario e a noite

Belisário e a noite

Belisário espera a mudança do sinal no semáforo, o hominho vai ficá verde e vai dá um passinho, Arlete também aguarda com paciência e olha para ele. Estão cansados que o dia foi de lida bruta, automóveis passam rápido à medida que o sinal se abre, Belisário se encolhe na calçada, porcaria dessa gente com esses carrinhos no meio da rua, essa baianada toda enchendo o saco, o pessoal não tem paciência, Belisário suspira resignado, finge que não ouve, São Paulo é uma cidade sem paciência. Só a lua cheia está mucho linda mesmo num é Arlete, Arlete continua andando, solta um grunhido fraquinho, é fome, nem deu pra comer hoje né, quando a gente chegar em casa, eu te faço uma bela mistura viu, meu dengo, ela o observa com os olhos mansos e aquietados balança o rabo concordando, as tetas murchas acompanham o movimento. Ainda num deu tempo de ver a lua tão cheia, de mel dizem, que seu mel acabou, fica catando o lixo dos outros, levando o carrinho pelas ruas, cheio de papel e garrafas e plásticos e ferro retorcido, montoeira dos homens, dia após dia, amassando as latinhas de refrigerante com o pé, um estalido seco, poc, poc, vira uma chapinha; vergonha tem sim sinhô, veio tão esperançado pra Sum Paulo, ia voltar logo, logo, o pai e a mãe ficaram na porta do casebre meio que caindo pras banda das derecha, ai, que dor no peito, gente, ver a mãe tão mirradinha enxugando os olhos com as palma da mão tão cheia de veia e calo, pai com os beiço tremilicando, os irmãos que olhavam sem ver direito, barrigas grandes, meio nus, tão pequenos, Arlindo você é o maior, toma conta dos irmão que eu vorto, vorto, no dia da Santíssima Trindade eu vorto, a gente pode ir pra cidade, primeiro na procissão, depois eu levo ocêis na quermesse, quem sabe tirar retrato, toda a família, a criação de cabra vai aumentar com o dinheiro que eu vou mandá pai; olha a mata que vai rareando pros lados do rio Tietê, igual que nem a cabeça da Mercedes Leitão, tão bonita que era, a moça mais bonita e rica daquela cidade da beirada do sertão, s’enrabichou pelo moço do circo que veio na cidade aquele ano; o tal Ambrosino, tinha olhar de táxi em dia de chuva, bigodinho fino, cabelos amarrados pra trás, coisa de mulher, falaram, ele inté achou bonito aquele cabelão amarrado com fita vermelha voando, voando, quando ele ficava em pé se equilibrando imrriba dum cavalo enfeitado com arreios coloridos e penacho branco, enquanto Carlos Galhardo cantava Velho Realejo. Dizem que Mercedes perdeu a cabeça, a vergonha e a virgindade, o moço do circo foi-se embora num domingo de sol quando ainda se ouvia o sino da igreja matriz e a graúna pousava com calma sobre o galho retorcido do jacarandá; foi-se embora pela estrada poeirenta onde as gabirobas, pitangas e marmelos se balançavam flertando com o vento de agosto. Ambrosino não falou com Mercedes nem lhe deu adeus, num careceu, que o pai dela, homem de bem, a trancara no quarto dos fundos que dava para uma paineira meio torta e gravetos secos que se espalhavam doloridos pela terra dura. Assim foi e Mercedes, pelo desasossego e pelo chicote que castigava seu coração, começou a perder os cabelos negros de tão bonitos cachos que escorriam pelas costas devagar, quando ela passava. Caíram aos montes no travesseiro, pela casa, quando ela se lavava e se penteava com aflição. Médicos foram consultados, até pra Recife ela foi, meio escondida e com um lenço na cabeça, no meio de uma tarde também escondida. O cabelo nunca mais voltou, ficou uma penugem rala, com falhas, como terra queimada. Nunca mais a viu. Tornou-se uma reclusa, como tantas outras por esses sertões onde os amores são, por vezes, contrariados.

Belisário vai caminhando a passos mais largos, já são nove e meia da noite, passa pela igreja de Santo Amaro, o relógio tem os ponteiros em setas, no carrinho que empurra, a imagem de São Expedito amarrado à grade olha fixamente para frente, um cão late por costume, um cheiro de lenha queimada sobe pelo ar frio, uma cortina escapa pela janela, grilos abrem a sala de estar da noite. Por trás da torre vê-se a lua cheia que vai andando junto com ele, Arlete se cansou, equilibra-se sobre os papelões da carroça, tantas estrelas se vêem quando as luzes da cidade vão ficando longe, que o céu de Caruaru também era assim, se alembra quando olhava à noite escura que vinha chegando de manso no serrado, mãe se sentava à porta da casa, na frente o terreiro onde o luar clareava tudo; dava pra ver os pontos que a ela fazia no tecido fino, a sombra de Belisário ia ficando grande e ele brincava com ela maravilhado, sei lá se num parece a mula sem cabeça hein e as fadas de vestidos azuis tão cheios de estrelas, uma varinha comprida na mão, estão batendo com ela na cabeça de uma menina loira, viu o quadro numa folhinha antiga na venda do seu Pereira. Os irmãos corriam pelo terreiro e o pai distribuía balas de mel que eram chupadas em lambidas parcimoniosas. Belisário olhava as estrelas cadentes no céu escuro e pensava as maravilhas de Deus que o homem não podia ver na cidade de pedra. Atravessa a ponte do Socorro, olha Arlete que a gente já tá chegando minha fia, quando eu vortá pra Caruaru te levo comigo que amigo do coração a gente num larga por ai, né mermo, Arlete balança a cauda com interesse e a noite vai alta, alta. Passa pelo bar do Seu Simplício, e aí Belisário, muita latinha hoje, mucha, mucha, já tá dando pra passagem pro Recife, tá quase, tá quase, dona Conchita vai bem, vai, vai, tá esperando a filha que vem passar o fim de semana, inté seu Simplício, inté Belisário que a noite vai alta, vai alta, correndo, olha a mula sem cabeça Belisário, olha as fadas , vestidos azuis tão cheios de estrelas, que seus sonhos hão de se realizar, meu rapaz, sorri o Padre Firmino quando Belisário lhe conta sobre o desenho tão bonito. Arlete dorme, o focinho encostado nas duas patas, sonho justo, que cachorros também os têm, luzes vão escasseando, fica o clarão da lua grande, o chiado manso do carrinho, o ressonar de Arlete, a esperança de voltar para Caruaru no dia da Santíssima Trindade, o som do Velho Realejo enche o ar, a noite engole Belisário com sossego.

Belisário e a noite

Belisário espera a mudança do sinal no semáforo, o hominho vai ficá verde e vai dá um passinho, Arlete também aguarda com paciência e olha para ele. Estão cansados que o dia foi de lida bruta, automóveis passam rápido à medida que o sinal se abre, Belisário se encolhe na calçada, porcaria dessa gente com esses carrinhos no meio da rua, essa baianada toda enchendo o saco, o pessoal não tem paciência, Belisário suspira resignado, finge que não ouve, São Paulo é uma cidade sem paciência. Só a lua cheia está mucho linda mesmo num é Arlete, Arlete continua andando, solta um grunhido fraquinho, é fome, nem deu pra comer hoje né, quando a gente chegar em casa, eu te faço uma bela mistura viu, meu dengo, ela o observa com os olhos mansos e aquietados balança o rabo concordando, as tetas murchas acompanham o movimento. Ainda num deu tempo de ver a lua tão cheia, de mel dizem, que seu mel acabou, fica catando o lixo dos outros, levando o carrinho pelas ruas, cheio de papel e garrafas e plásticos e ferro retorcido, montoeira dos homens, dia após dia, amassando as latinhas de refrigerante com o pé, um estalido seco, poc, poc, vira uma chapinha; vergonha tem sim sinhô, veio tão esperançado pra Sum Paulo, ia voltar logo, logo, o pai e a mãe ficaram na porta do casebre meio que caindo pras banda das derecha, ai, que dor no peito, gente, ver a mãe tão mirradinha enxugando os olhos com as palma da mão tão cheia de veia e calo, pai com os beiço tremilicando, os irmãos que olhavam sem ver direito, barrigas grandes, meio nus, tão pequenos, Arlindo você é o maior, toma conta dos irmão que eu vorto, vorto, no dia da Santíssima Trindade eu vorto, a gente pode ir pra cidade, primeiro na procissão, depois eu levo ocêis na quermesse, quem sabe tirar retrato, toda a família, a criação de cabra vai aumentar com o dinheiro que eu vou mandá pai; olha a mata que vai rareando pros lados do rio Tietê, igual que nem a cabeça da Mercedes Leitão, tão bonita que era, a moça mais bonita e rica daquela cidade da beirada do sertão, s’enrabichou pelo moço do circo que veio na cidade aquele ano; o tal Ambrosino, tinha olhar de táxi em dia de chuva, bigodinho fino, cabelos amarrados pra trás, coisa de mulher, falaram, ele inté achou bonito aquele cabelão amarrado com fita vermelha voando, voando, quando ele ficava em pé se equilibrando imrriba dum cavalo enfeitado com arreios coloridos e penacho branco, enquanto Carlos Galhardo cantava Velho Realejo. Dizem que Mercedes perdeu a cabeça, a vergonha e a virgindade, o moço do circo foi-se embora num domingo de sol quando ainda se ouvia o sino da igreja matriz e a graúna pousava com calma sobre o galho retorcido do jacarandá; foi-se embora pela estrada poeirenta onde as gabirobas, pitangas e marmelos se balançavam flertando com o vento de agosto. Ambrosino não falou com Mercedes nem lhe deu adeus, num careceu, que o pai dela, homem de bem, a trancara no quarto dos fundos que dava para uma paineira meio torta e gravetos secos que se espalhavam doloridos pela terra dura. Assim foi e Mercedes, pelo desasossego e pelo chicote que castigava seu coração, começou a perder os cabelos negros de tão bonitos cachos que escorriam pelas costas devagar, quando ela passava. Caíram aos montes no travesseiro, pela casa, quando ela se lavava e se penteava com aflição. Médicos foram consultados, até pra Recife ela foi, meio escondida e com um lenço na cabeça, no meio de uma tarde também escondida. O cabelo nunca mais voltou, ficou uma penugem rala, com falhas, como terra queimada. Nunca mais a viu. Tornou-se uma reclusa, como tantas outras por esses sertões onde os amores são, por vezes, contrariados.

Belisário vai caminhando a passos mais largos, já são nove e meia da noite, passa pela igreja de Santo Amaro, o relógio tem os ponteiros em setas, no carrinho que empurra, a imagem de São Expedito amarrado à grade olha fixamente para frente, um cão late por costume, um cheiro de lenha queimada sobe pelo ar frio, uma cortina escapa pela janela, grilos abrem a sala de estar da noite. Por trás da torre vê-se a lua cheia que vai andando junto com ele, Arlete se cansou, equilibra-se sobre os papelões da carroça, tantas estrelas se vêem quando as luzes da cidade vão ficando longe, que o céu de Caruaru também era assim, se alembra quando olhava à noite escura que vinha chegando de manso no serrado, mãe se sentava à porta da casa, na frente o terreiro onde o luar clareava tudo; dava pra ver os pontos que a ela fazia no tecido fino, a sombra de Belisário ia ficando grande e ele brincava com ela maravilhado, sei lá se num parece a mula sem cabeça hein e as fadas de vestidos azuis tão cheios de estrelas, uma varinha comprida na mão, estão batendo com ela na cabeça de uma menina loira, viu o quadro numa folhinha antiga na venda do seu Pereira. Os irmãos corriam pelo terreiro e o pai distribuía balas de mel que eram chupadas em lambidas parcimoniosas. Belisário olhava as estrelas cadentes no céu escuro e pensava as maravilhas de Deus que o homem não podia ver na cidade de pedra. Atravessa a ponte do Socorro, olha Arlete que a gente já tá chegando minha fia, quando eu vortá pra Caruaru te levo comigo que amigo do coração a gente num larga por ai, né mermo, Arlete balança a cauda com interesse e a noite vai alta, alta. Passa pelo bar do Seu Simplício, e aí Belisário, muita latinha hoje, mucha, mucha, já tá dando pra passagem pro Recife, tá quase, tá quase, dona Conchita vai bem, vai, vai, tá esperando a filha que vem passar o fim de semana, inté seu Simplício, inté Belisário que a noite vai alta, vai alta, correndo, olha a mula sem cabeça Belisário, olha as fadas , vestidos azuis tão cheios de estrelas, que seus sonhos hão de se realizar, meu rapaz, sorri o Padre Firmino quando Belisário lhe conta sobre o desenho tão bonito. Arlete dorme, o focinho encostado nas duas patas, sonho justo, que cachorros também os têm, luzes vão escasseando, fica o clarão da lua grande, o chiado manso do carrinho, o ressonar de Arlete, a esperança de voltar para Caruaru no dia da Santíssima Trindade, o som do Velho Realejo enche o ar, a noite engole Belisário com sossego.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 12/09/2012
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