Uma questão de tempo

Era noite.

Acordei com um solavanco do ônibus. A primeira visão através da janela foi a de um outdoor no qual uma linda mulher que eu nunca teria usava um lindo vestido que eu nunca poderia dar a ela. O viaduto, carros lá embaixo. Um grande relógio digital mostrando a hora errada, uma igreja fechada, uma casa noturna aberta. O terminal.

Desembarquei. Ninguém desceu comigo. Sentei num banco sujo, cruzei os braços sobre as pernas abertas, baixei a cabeça e fiquei contemplando o chão não menos sujo. Faltava mais um ônibus. Tentei pensar em alguma coisa boa. Nada.

Uma voz interrompeu minhas meditações: "Moço, me deixa ler sua sorte?". Levantei a cabeça. Uma mulher velha demais para estar naquele lugar e naquela hora me encarava com um olhar suplicante, as mãos estendidas. Não soube o que dizer. Ela repetiu "Me deixa ler sua sorte?". Pausa. Respondi "Não tenho sorte". Ela: "Todo mundo tem sorte... Alguns só não sabem onde ela está".

Silêncio. Onde estava meu ônibus?

Ela foi direto ao assunto, no melhor estilo pedinte-curitibano: "O senhor tem dinheiro pra eu comprar um salgado?", - agora eu já era senhor. Revirei a mochila e dei a ela tudo o que tinha. Ela saiu sem agradecer. Eu não tinha muita coisa.

Bocejei sonoramente. Tudo em mim ou doía, ou tinha morrido. Ouvi sons de passos. Um homem de cabelos grisalhos e rosto inchado, caminhava tropegamente em minha direção. Sentou ao meu lado. "Mais um", pensei.

Disse-me que trabalhava consertando motores. Depois explicou como eles funcionavam. Depois como estragavam. E, depois, como ele costumava arrumá-los. Contou também como a vida dele havia sido arruinada, irreparavelmente.

"Quinze anos juntos. Comprei o terreno. Fiz a casa. Dava tudo pra ela e para as crianças. Daí o movimento na oficina baixou. E eu tenho culpa que esses carros hoje em dia são bons, não estragam nunca?" Ele parecia estar bebendo há dias. "Era só uma questão de tempo, eu dizia pra ela. Os serviços foram acabando, comecei de beber direto. Desespero, desespero! Ela disse que ia pegar das crianças e sumir... E fez mesmo", soluços entrecortando a voz do velho, "Era só uma questão de tempo...", meu ônibus havia chegado. Me despedi com um sinal de cabeça. Quando estava prestes a entrar no ônibus, ele gritou alguma coisa que não entendi. Fiz que não era comigo.

A viagem consumou-se sem maiores surpresas.

Já no quarto alugado, deitado na cama alugada, senti uma solidão monstruosa tentando se apoderar do meu espírito. Fiz que não era comigo. Mas dessa vez não adiantou.

Fechei os olhos com força. O cara do quarto do lado ouvia um rádio chiado no último volume. Tudo bem, eu ia sair dali assim que pudesse bancar um lugar melhor.

Era só uma questão de tempo.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 11/09/2012
Reeditado em 02/07/2015
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