A terceira idade
Terceira idade
Numa outro espaço comentei sobre a terceira idade e do preconceito que existe por trás desse termo. É preconceito mesmo, não existe outra palavra e azar de quem o inventou, mas não é sobre isso que quero falar agora. Gostaria de conversar sobre a necessidade que se tem, hoje em dia, de não deixar o idoso em paz , quem sabe se é para deixar o idoso em paz mesmo - literalmente - que idoso não cabe no novo milênio. Com isso, não quero dizer que ele precise ficar inerte esperando a morte que ela é mais esperta e pode deixar o pobre esperando anos e anos e acabar com a vida do garoto, arrimo de família ou arrimo de esperança, ou qualquer arrimo, pois que a morte faz o que lhe dá na telha e é muito volúvel; bem diz algum trecho sagrado que o Cristo virá, inclusive, para nos livrar dela. Assunto sobre a morte também fica para outra crônica. Mas hoje em dia parece-me que o idoso, para ser feliz, tem que fazer ginástica, andar, socializar, não comer, olhar o colesterol, a osteoporose, a pressão, a próstata e ser otimista, ter pensamentos positivos, ser produtivo e ser miss idosa, como vi num documentário dos Estados Unidos. Nem sei se dá tempo para tudo isso e se não perdem a serenidade e um pouco de sabedoria, raros bens que vêm, em geral, com a velhice. Se gostam, tudo bem, nada como a liberdade humana, cada um é feliz como pode e necessita. Se o fazem para mostrar como ainda podem produzir algo, por uma vaidade tardia ou para alegrar familiares e aparecer na mídia, aí fica complicado. Quando eu era menina era um pouco diferente, essa coisa de velhice. Por exemplo, a dona Leontina. Que era uma idosa muito simpática, calma, gentil, falava baixinho, fazia crochê e, quando você conversava com ela sobre alguma tristeza ela revirava os olhinhos azuis com certa malícia generosa:- Um aperto no coração né minha filha, não ligue pra isso que, antes de casar, sara e ficava tudo mais ou menos dentro da esperança que a esperança é a penúltima que morre, depois dela é a gente que morre, por isso mesmo, ela é a penúltima. Mas a dona Leontina, que fazia um tipo franzino, vivia com um xale rosa sobre os ombros, que garoinha enjoada, tá frio hoje né filha, todo mundo era sua filha e morava numa casinha no final da rua , cujo portão era verde e fazia um bonito contraste com a primavera cor de maravilha que crescia sobre ele, em forma de arco. Nessa casa, havia um jardim pequeno muito arrumadinho com flores de várias cores que ficavam ali nos canteiros bem redondos por onde um gato passava alheio ao colorido pois que, gato é um pouco indiferente mesmo mas, às vezes, como qualquer ser humano, finge que não vê a beleza, só por despeito. Dona Leontina oferecia café e bolinho de arroz quando você ia à casa dela, morava num sobrado pequeno só com dois quartos, uma salinha, uma escada em caracol, cozinha miúda e um quintal que só dava pra se ver a metade de uma nuvem e uma nesga de céu azul, num dia de sol. Em todas as mesinhas e nos encostos dos sofás havia toalhinhas de crochê de várias cores e de vários pontos; rosas rombudas, tranças e quadradinhos. Ficava um pouco confuso mas para mim parecia muito aconchegante e feliz, não sei dizer se era por causa das panelas na cozinha, tão areadas que a gente podia ver o rosto meio torto nelas, da toalhinha xadrez sobre o fogão, sempre engomada, do açucareiro de louça com cara de cozinheiro e sorrindo, da resignação alegre da dona Leontina. Nem sei se ela tinha medo de morrer só, ou de não ter cumprido seus projetos, ou de os ter cumprido de forma torta, se seus filhos a abandonaram, se ficou viúva, ou se já era uma sozinha pelo mundo, que tem gente que nasce para não ter o par, não sei mesmo. Ela nunca comentou o fato e a gente, quando é criança, tem um desinteresse mais saudável. Só sei que andava de lá pra cá com suas chinelinhas de lã xadrez, ia à feira e à missa, conversava com os vizinhos no tal portão verde, abanava a cabeça complacente quando ouvia uma bobagem, inclinava a cabeça com curiosidade quando ouvia algo de utilidade pública, meneava a cabeça pra frente e sorria quando ouvia algo muito produtivo para a mente e alma e, às vezes, fingia que não ouvia quando o assunto era de mau gosto e de má consciência; tinha um vestido de golinha bordada, um bolsinha de miçangas com desenho indígena, um broche de joaninha com olho de rubi, e um porta-chapéu que ficava na porta da frente e que sempre achei, um dia, iria estender a mão e me convidar para dançar; sei que ouvia rádio-teatro e possuía uma vitrola , que naquela época se dizia vitrola, de som fanhoso e que desafinava quando a agulha ia chegando no fim do disco, Francisco Alves ia ficando com a voz mais grossa, mais grossa, até que a agulha dava um salto quando ele estava terminando a frase “ela nassceu com o destiiino da luuua, pra todos que andam” pulava e depois continuava... “viverrr só pra mimmmm”. Mas não tinha nenhuma importância porque eu gostava assim mesmo, gostava de tomar café com leite e colocar o pão dentro da xícara e comer com colher, gostava de molhar as plantas pra dona Leontina, de debulhar ervilhas que caiam numa cestinha de vime, de descascar amendoim pra fazer pé-de-moleque, da folhinha atrás da porta, cada mês uma flor; achava a dentadura da dona Leontina muito alaranjada, mas, como já disse antes, a gente se acostumava com as coisas, se acostumava com seus cabelos brancos num coque miudinho, com seu corpo que não tinha uma forma definida, nem gorda, nem magra, nem alta, nem baixa, do seu sorriso e de sua tranqüilidade que vinha com os anos, quando a vida vai, aos poucos, apagando as nossas fogueiras vai indo, vai indo, fica um amontoadinho de cinza ali, outro acolá, um dia a gente passa e até ri daquele montinho que ficou. Ri, mas vai espiar pra ver se ainda tem alguma brasa. A dona Leontina parecia que estava sempre à procura dessa brasinha, que brasinha da esperança, sempre pode estar no meio do carvão preto. Por isso eu gostava tanto dela. Por nunca ter deixado de procurar a esperança. Dona Leontina não fazia cooper, nem hidroginástica e nem sabia o que era socializar. Mas sempre procurou a tal brasinha pra assoprar a vida e até emprestava a dela pra gente acender nossa fogueira da meninice. Nunca achei que ela fosse da terceira idade. Que o bem querer não tem idade, muito menos, terceira.