Considerrações sobre outras terras
Considerações sobre outras terras
E eu estava meio aturdida, confusa mesmo. Não sei lhes dizer se era um túnel, estrada ou atalho, caminho ou viela; um beco? Sei que tudo era branco muito branco em volta, as árvores eram de neblina branca,branca, meio esfiapadas, isso eu sei; e se era noite não sei lhes explicar pois que os pássaros teimavam em cantar todos juntos num coral, ora já se viu, tanto podia ser noite, como já, o amanhecer. E esses pássaros eram coloridos, tão coloridos! Tangarás e colibris, andorinhas e tico-ticos, garças e araras, sabiás e coleirinhas com olhos de ametistas que brilhavam no escuro e as penas das asas tão longas que se enrolavam na ponta em arabescos de mesquita árabe... verdes, azuis, amarelos. E eles pousavam nos jequitibás, ipês roxos, nos manacás e flamboyants, nos jatobás e jacarandás, nos brincos de princesa e eis que também tinham olhos, que estranho, olhos mesmo, como os da gente e sorriam para mim, as árvores e os passarinhos; perguntavam se eu estava cansada da viagem que afinal estava andando a pé há horas por uma estrada tão branca onde a lua era grande, grande e sorria um sorriso pálido e doce e também me seguia com seus braços compridos de luar; que também era muito solícita perguntando se eu queria comer um pouco de mel que escorria por suas bordas, pois que, também mencionou que eu deveria estar com fome. E era um difícil caminhar por entre tantas estrelas, umas com caudas longas, longas, outras com caudas menores e outras ainda, nas cores azul e rosa claro, pequenas e sem cauda e essas pulavam mais que as outras, deduzi que eram as estrelas-criança pois que, vez em quando, corriam à minha volta, sorriam e davam cambalhotas. No início dessa viagem eu ainda me sentia tonta e sem equilíbrio e eis que antes dessa estrada havia uma baleia que me aguardava num cais de porto escuro que balançava no ar sem cair, amarrado em laços verdes e amarelos que volteavam ao vento onde outras baleias estavam atracadas, todas de cor azul escuro e com pequenos mastros de luzes pequenas sobre as costas, que descobri serem vaga-lumes porque me cumprimentaram com votos de boas-vindas; também perguntavam se estava bem acomodada sobre a baleia, se gostaria de um cobertor ou manta de nuvem verde-água pois que iria atravessar um rio longo e risonho com seu olho d’água esperto, em cujo leito, os botos da Amazônia e as vitórias-régias curiosas, falavam entre si enquanto tomavam café e brioches com as mãos de pétalas e acenavam com votos de boa viagem; assim, outras baleias nadavam ao lado da minha, cada uma com apenas um passageiro, alguns alegres ao lado do timoneiro com capa comprida cor de esperança a quem tudo perguntavam e eis que sua curiosidade era sem malícia; mas vi outros que estavam encolhidos sob a manta de nuvem verde-água chorando baixinho e outros ainda, muito aflitos, que perguntavam aos peixes e aos pirilampos onde estavam e o que era feito de sua família e da vida que estavam vivendo; e queriam, muitos entre eles saltar dos barcos, desesperados, enquanto um grupo de araras azuis que estão em extinção no Brasil acudiam com batidas nas costas dos tais desesperados e os mico-leão, que também estão em extinção no Brasil, limpavam as lágrimas dos intranqüilos, que ficassem sossegados, logo, logo estaria tudo explicado; de minha parte, resolvi ficar calada pois que entendi ser melhor aguardar os acontecimentos. E, fomos dar numa praia onde alguns passageiros desceram comigo sobre a areia de vidro claro e transparente que cantava baixinho e onde um mar de gelatina tinha voz de barítono, abaixo da areia, eis que tive a impressão de ver a terra girando, era um girar muito rápido para um ver mais demorado e bem que tentamos ficar todos juntos, o que não foi possível pois que, um cão de longos bigodes e vestido com as cores da escola de samba Mangueira, nos avisou que cada um de nós tomaria um caminho naquela praia, de acordo com os pedaços de pequenas fagulhas de tempo que havia deixado pelas trilhas com nossos nomes, pois que, nascemos sós. E contrafeita, em comentando com o cão que nascemos sós mas não necessariamente deveríamos viver sós, ele me olhou complacente e respondeu que esse era tão somente seu trabalho e que o fazia com raro prazer e sumiu gingando com um pandeiro nas mãos, fazendo mesuras de mestre-sala. Assim, aos poucos, fui caminhando pela trilha com mais firmeza sob os aplausos dos passarinhos que me incentivavam muito, olha que você consegue, muito bem, sempre soubemos como é inteligente e solidária e nem se preocupe mais com suas mazelas que elas viraram pó, e, quando de minha aflição de não ter resgatado tudo, as corujas, que estavam mais atrás nesse bando de pássaros, se aproximaram e me saudaram vestidas com togas roxas e compridas e me mostraram um livro que iam folheando. E esse livro era de um material que parecia seda, mas quando você virava a folha, era meio transparente, como muitos não apreciam. E, revi suspeitosa minhas mazelas em quadros que iam se sucedendo, como quando fui conivente com um maltrato ou omissa com a dor infligida a outrem pelo mero exercício de poder, ou subserviente por um pedaço de atenção sem valor; e as lágrimas que corriam pelo meu rosto foram caindo pela estrada em estalidos, eis que ficaram duras como gelo e iam formando o caminho que eu vira tão branco, branco; ao meu redor, árvores e passarinhos me olhavam consternados, alguns chorando baixinho, tamanduás-bandeira, pacas e capivaras, onças e jaguatiricas, garças e papagaios e todos os animais do Brasil que ali se encontravam, fizeram uma grande roda; num de repente, a Iara, o saci-pererê, a mula sem cabeça e o boi tatá, chegaram montados no cavalo alado do curupira e olharam a roda com um meio sorriso; parando um pouco meu choro convulsivo, a eles perguntei o que ali faziam se não eram reais, viviam na mente do povo brasileiro; e me responderam calmamente que eram reais e sempre seriam à medida que as crenças e tradições de um povo permanecessem vivas e que eu era a razão deles estarem ali e eu lhes disse que, mesmo em não acreditando neles como criaturas viventes, sempre os quis bem como lendas do Brasil, criados à luz do medo, da imaginação e da esperança. E eis que, ao meu discurso, o saci-pererê tirou seu barrete vermelho e fez uma graciosa reverência, a Iara ajeitou sua estrela na testa sorrindo e me enviou um beijo e o curupira voou alto em seu cavalo de rédeas de fogo comentando como sempre seria o guardião das florestas brasileiras, enquanto existissem pessoas que por elas se interessassem, ao que, os bichos, que haviam feito uma grande roda, permaneceram silenciosamente respeitosos. E eis que a pequena viúva negra por ser a mais velha, por tecer as rendas da vida que estavam espalhadas pelo céu, me abraçou com seus muitos braços o que me causou certo desconforto e sorriu, os dentes pequenos e afiados; e me disse então que tudo é um pouco a ilusão de Buda, um pouco a justiça de Maomé um pouco a retidão de Moisés e um pouco a compaixão de Jesus; um muito da filosofia e de trabalho, um pouco a curiosidade pela ciência, muito do desconhecido e da fé, muito do amor e do ódio e, que para se chegar a essa união, muitos séculos iriam se passar até que pudéssemos entender o porquê de tudo e que eu iria saber antes, posto que estava ali. E, quando de mim se acercaram com misericórdia, o susto e o pasmo e uma alegria que nunca vi antes se aproximaram de meu coração e eis que fui caindo num túnel longo, longo e...me lembrei que havia esquecido de comprar pão e band-aid e que lamentei tanto, mas tanto mesmo, não saber onde aquilo tudo iria terminar. E quando contei essa história, muitos disseram que eu era muito imaginativa e que a ilusão era um perigo para a vida. Fiquei muito zangada e prometi nunca mais contar a ninguém nada de interessante que me acontecesse, eis que, me desabafo agora com o caro leito e o que sei é que tudo isso aconteceu numa noite clara de um quintal do Brasil.