No jardim do bem e do mal
NO JARDIM DO BEM E DO MAL
Quando passei por eles estavam de mãos dadas e sentados no banco do jardim, aproveitando a fresca, diria alguém do antigamente. Chamava especialmente a atenção dos passantes a cor dos cabelos do casal, totalmente branca, e as mãos duramente entrelaçadas. Não conversavam entre si, olhavam distraídos as pessoas que circulavam, olhar dos velhos, talvez, misto de tolerância e apatia, talvez, encantamento infanto-seníl, talvez ressentimento enfraquecido e amarelado nas bordas. Através dos cabelos brancos, tão finos, viam-se os lírios amarelos do canteiro ao lado, haviam perdido a espessura da juventude; uma senhora passa e sorri: - Que lindo não é mesmo, digo, eles aí, de mãos dadas, envelhecer assim vale a pena, juntos, enfrentando tudo, amor eterno, ainda sorrindo, se afasta em direção ao ponto de ônibus, eu me sento no banco à frente do casal e os contemplo disfarçadamente. As mãos da senhora são pequenas e com manchas marrom claro, ao longo do dorso magro, veias azuis fizeram caminhos imponderáveis, mãos de vidro que se entrelaçam nas do homem que as segura com firmeza quase desesperada entre as suas, morenas, pelos em tufos espessos cobrindo os nós dos dedos inusitadamente finos; como a senhora que fez o comentário, também eu conjeturo sobre o porquê de estarem ali naquela tarde de fim de verão, eis que conjeturar tem feito parte de nossa mente, pelos milênios, séculos, décadas, anos, meses, dias, horas, minutos, segundos, pensamos que sabemos, que entendemos, que deduzimos com exatidão, que descobrimos antes dos outros; eia pois, seriam só isso, um casal que envelheceu bem, que se amou de verdade, com força e paixão e desvelo e continência ou, olhando a mão quase em garra que prende com destreza a mãozinha delicada, poderia ser indício de certo desespero, afinal Maria Amélia, agora já é muito tarde, fica até feio pra nós, dois velhos, separados, você me desculpou na juventude e vem agora com essa conversa de não esquecer, eu fiquei com você, não fiquei, ela, então, poderia se virar intempestivamente, flecha de raiva atravessaria os olhos azuis, indo fincar-se no ombro dele, você, Custódio, você pensa que só porque sou velha não tenho mais sentimentos, esses anos todos sofrendo calada e agüentando suas aventuras, tenho minha dignidade, entendeu; lembro-me do apresentador do programa que gesticula desenfreadamente, esse negócio de infidelidade é fogo minha gente, vocês se preparem que o que vem por aí é uma bomba, tô até com receio de falar frente às câmeras, a risada fininha e amesquinhada, como a do coisa ruim, Lúcifer, atualmente, deu de aparecer na televisão, os ignorantes vendem as almas à troco de ser famoso por dez minutos; mas eis que tudo aquilo se passou quando Custódio começou a pintar os bigodes já meio grisalhos, quando voltava para casa bem mais tarde, antes tão regrado, verduras cozidas, nada de fritura, dormir cedo que Deus ajuda a quem cedo madruga, quando seu olhar adquiriu um brilho febril e seco, quando as correntes invisíveis que ele colocava com capricho nos pés de Maria Amélia se afrouxaram como que por encanto, foi aí que ela se deu conta de uma outra mulher; por bondade ressentida, um dia lhe contaram como foi visto no largo da Pólvora com uma moça, jovem ainda, alta e loura: - Só te falo por que sou tua amiga Maria Amélia, você não merece isso, estavam bem agarradinhos às vistas de todos, nem se importavam e ela ria descaradamente, não seja boba, finja que não viu, não faça a bobagem que a Guilhermina fez, sair de casa no meio da noite, hoje não tem um gato pra puxar pelo rabo, os filhos ficaram sem estudar, tá uma velha. Deixe-o pensar que você não sabe, afinal, é um bom pai, nunca te faltou nada, você tem uma vida confortável, sabe, isso conta muito hoje em dia, daqui a pouco ele cansa dessa zinha e ela se encolhe, se escurece, nas correntes que arrasta nos pés, um lagarto desliza sorrindo, nesse instante, as mãos se desvencilhariam das dele com força e cairiam inertes sobre o colo, ao vê-las caídas como pombas mortas poder-se-ia imaginar que fosse o contrário do que constatei, ele a amou um amor desesperado desses amores co-dependentes, amores encardidos, tão bom o seu Custódio, santo marido, nunca vi tanto mimo para uma mulher, deu no que deu, ela foi-se embora com o primeiro que apareceu, um tipo à toa, sem eira nem beira, mascateando de porta em porta, nem se compara com seu Custódio, afinal, homem estabelecido: - Vocês nunca viram a opressão que ela sofreu, ele era implacável, implacável, diria uma confidente e defensora de Maria Amélia, ele a olharia com desvelo mórbido, estou fazendo isso pro seu bem Maria Amélia, pro seu bem, por que te tenho quero bem mesmo, você tem essa saúde delicada, prometi ao senhor seu pai sempre cuidar de você, é o que farei, prometi, sou homem de palavra, ouvia-se o tinir fininho das correntes quando ela caminhave – no passado, o viu pela janela, o tal tipo à toa, que lhe ofereceu espanadores de várias cores, espanavam até poeira de mal de amor, ele apregoava com malícia juvenil, os olhos eram cor de mel e brilhavam sob o sol, o mel da paixão escorria pelos cantos dos olhos. Foi-se embora com ele no dia em que os marrecos azuis migraram para o sul à procura de clima mais ameno; conheceu novas estradas, algumas poeirentas sob um sol obstinado, casinhas de beira de estrada e crianças que ainda faziam roda, noites de céu escancarado, olha lá uma estrela cadente Horácio, a gente pode fazer um pedido que dá certo, ele a contemplava com um sorriso distraído e meio frouxo, querida Maria Amélia, temos que montar nessa estrela cadente, nesse cavalo alado, compreende, montar e atravessar rios e oceanos e andar, andar, ser livre, livre, sempre, sempre e o tal sorriso acendia as fogueiras da noite e um dia, ele se foi; ela o viu montar com destreza na tal estrela cadente, olha Maria Amélia, procura a tua estrela pra montar e se não voas com fé , melhor será que retornes para local que consideravas seguro. Não me queira mal por isso; levo comigo um pedacinho de seus olhos azuis, serão sempre, para mim, uma manhã de primavera e partiu em galope forte pela estrada que a lua tornava branca. Voltara ao casarão da rua das Flores onde Custódio a aguardara com aconchego mórbido e ali viveram em meio a filhos que nasceram de um gracioso achincalhar da mente. Enquanto conjeturo, Custódio se mexe inquieto no banco e sua cabeça pende para um lado. Nesse seu gesto, posso entender que se perdoaram, ou que se odeiam parcimoniosamente, um pedacinho para cada manhã que se levanta, que ainda se amam, que permaneceram juntos pelo dinheiro, pelos filhos, pela moral ressequida, pelo medo, pelo costume, por apatia, preguiça, ou que se amaram como dois viventes e agora restou a ternura amiga e posso pensar, e conjeturar, e conjeturar, eis que ponderamos sobre a vida dos outros e pensamos que sabemos, que entendemos, que aclaramos os porquês, senhores do mundo e da razão. Eles se levantam do banco e enveredam pelas alamedas escuras. O apresentador da televisão ri e se desmancha no ar. Anoiteceu no jardim do bem e do mal.
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