Tragédia nipônica

Aiko e Akene formavam belo casal. Ele, japonês legítimo, isto é, issei, 32 anos, engenheiro, no Brasil há mais de 15 anos, ainda com forte sotaque da terra do sol nascente, tímido ao extremo e, portanto, pouco comunicativo. Vivia para a mulher, seus dois filhos e o trabalho. Ela, nissei, 26 anos, enfermeira e, ao contrário do marido, bonita, de corpo escultural, pequena estatura, bastante comunicativa e alegre. Trabalha em hospital público que tem diretor médico que de tanto assediá-la conseguiu, sob chantagem de despedi-la, fazê-la sua amante. Ela o rejeitou por muito tempo, mas um dia cedeu. Eram encontros discretos no início, geralmente no intervalo dos plantões dos dois, descambando para encontros mais ousados, em motéis e garçonieres – apartamento utilizado para encontros amorosos fortuitos -, de amigos. Ela sempre procurou não chegar muito tarde a casa, para que o marido não desconfiasse. Quando saía do hospital, para seus encontros deixava recado com colega, caso o marido telefonasse, que ela passaria antes no supermercado ou coisa semelhante.

Em casa ela era carinhosa com o marido, dava muita atenção para ele e para os filhos, nada demonstrava que seu comportamento fora de casa era pecaminoso. Aos domingos e feriados o casal passeava com as crianças pelos parques, praças e algumas vezes iam ao cinema, quando passava filmes para crianças. Eram momentos prazerosos para Aiko. A vizinhança tinha o casal como de comportamento imaculado, exemplar. As crianças estão matriculadas em excelente escola, os pais eram discretos, bastante educados e trabalhadores, diziam. Nada mais sabiam da vida dos dois. Também isso não lhes dizia respeito. Eles moravam em rua pequena, sem saída e de poucas casas, umas quinze, algumas grandes para os padrões da cidade, outras não tão. Seus moradores de classe média para cima, médicos, professores universitários, advogados de renome na cidade, engenheiros e até o dono da padaria mais próspera do bairro. As casas foram mandadas construir pelos próprios proprietários, daí a diversidade arquitetural.

A casa de Aiko e Akene das mais modestas, eles não gostavam de ostentação, a preocupação do casal era com o conforto e a paz do ambiente. Amplo jardim, estilo japonês, constituído de caminhos de grande beleza desenhados com areia higienizada e branquíssima, cuja função é conectar entre si os diferentes pontos do jardim, proporcionando ao seu proprietário e visitantes caminhadas prazerosas entre os ambientes. Há, distribuído aleatoriamente, pedras de vários tamanhos, cobertas por musgo e poeira, indicando os anos de sua existência. Pequeno bosque ladeia esses caminhos e, complementando a paisagem, pequeno lago de água transparente, elemento essencial a um jardim japonês, por representar a vida. Nesse lago há carpas e fluxo de água que sai por orifício aberto em pedras ali colocadas. O fluxo constante da água renova a energia, e oferece som terapêutico ao ambiente.

As plantas são a alma do jardim, as quais lhe conferem vida e frescor. No jardim da casa do casal há árvores altas, para proporcionar sombra, arbustos, dando-lhe beleza e ocupando os espaços vazios, contribuindo para o equilíbrio Yin-Yang. Parte do espaço encontra-se ocupado por bambu, pinheiros, kaizuca, kuro-matusuo, junipero Kaizuca, plantados harmonicamente, mas sem simetria, criando ambiente natural, belo e funcional. Pouquíssimas flores estão plantadas, para não desviar a atenção do visitante do conjunto que representa o jardim.

Um jardineiro, de descendência japonesa, toma conta do jardim, mas Aiko gostava de inspecionar o trabalho do velho Matsumoto todos os dias antes de ir trabalhar. Também gostava de conversar sobre sua terra natal, enquanto admirava, com respeito, o trabalho incansável, meticuloso e paciente do velho homem. Ao falar sobre sua vida no Japão, Matsumoto ouvia o patrão sem parar de trabalhar, às vezes balançando a cabeça para concordar com ele. Ao se despedirem ambos se cumprimentavam à moda japonesa, curvando-se em sinal de respeito mútuo.

Em um dos lados da casa, Aiko mandara construir um anexo, que servia como gabinete de trabalho. Nele o engenheiro guardava desenhos de plantas de prédios, casas, piscinas e outros documentos ligados a sua profissão. Era também lugar de reflexão, quando estressado ou mesmo aborrecido com algo ou alguém, ele recorria ao seu refúgio, só saindo depois de encontrar a solução para o problema que o afligia. A ninguém era permitido entrar nesse recinto, nem mesmo sua mulher e filhos. Somente a faxineira, duas vezes por semana, sempre vigiada pelo jardineiro. Ele não guardava nada de especial, mas o local era o seu templo, onde também fazia suas meditações religiosas.

Antes de sair para trabalhar naquela manhã, Aiko recebera telefonema anônimo, informando que sua mulher o traía com o Dr. Orlando, um dos frequentadores de sua casa, ao qual dedicava total respeito e confiança. O engenheiro desligou o telefone, dirigiu-se ao carro e rumou para o hospital. Ele sempre saía depois das 9 horas e sua mulher às 7 horas, tempo suficiente para ela já se encontrar trabalhando. Não foi o que aconteceu. A recepcionista informara que Akene ainda não havia chegado, talvez tenha passado por algum lugar, completou a moça da recepção. E o Dr. Orlando, já chegou? Com a cabeça baixa, a recepcionista respondeu que não. O japonês sentiu uma dor profunda no peito e com a mão direita sobre ele retornou ao seu carro. Nervoso, ficou ali até perceber a chegada da esposa e logo depois do Dr. Orlando. Ambos se dirigiram à porta do hospital como dois estranhos, entraram e Aiko não mais os viu.

Passados alguns minutos, que pareceram horas, ele foi ao local de seu trabalho, cumprimentou o porteiro e foi até a sua sala. Pouco depois saiu com uma caixa nos braços, voltando ao seu carro. Chegou a casa, dirigiu-se ao seu templo sagrado. Não havia ninguém na casa toda, só o velho japonês que cuidava do jardim, que não estranhou sua chegada repentina. Dentro da caixa havia um revólver e muitos papéis velhos, para disfarçar a presença da arma. Aiko pegou o instrumento da morte, colocou na boca, como já vira fazer um personagem de filme de traição, apertou o gatilho. O velho Matsumoto não fez um gesto sequer, apenas disse: lavou a honra de modo errado. Ninguém ficou sabendo do motivo de tamanho gesto tresloucado. A esposa imaginava, mas não queria acreditar que havia sido descoberta. Para ela a reação do marido foi desmedida, atribuindo a desequilíbrio mental. Isso ficou na mente de todos.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 08/09/2012
Reeditado em 11/12/2012
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