Kelly Cristina e a lebre
KELLY CRISTINA E A LEBRE
Kelly Cristina está sentada sobre um pedaço de ferro retorcido, as perninhas balançam compassadamente, entretida com a boneca sem um olho, achada no lixo e sonha com o carrossel e seus cavalinhos azuis do parque. Por vezes, levanta a cabeça e olha o pai e mãe abaixados, catando alguma coisa, volta seu olhar para a boneca e a aperta junto ao peito mirrado, volta a olhar para os pais, seu estomago faz um barulho engraçado, o sol é forte, incomoda os olhos; foi só quando chegam muito perto é que consegue vê-los, um deles é uma lebre vestida de preto, o outro, mais baixo, não sabe identificar, encolhe-se quando um deles a toca, meu pai tá lá catando comida, eu tô esperando meu pai, Kelly Cristina responde em voz baixa e a lebre a coloca frente a um aparelho que reflete sua imagem, seus pais são colocados frente às câmeras aturdidos e envergonhados: Sim senhô somos do nordeste, e agora estou desempregado,- Vejam vocês o que fazem as autoridades deste país, nada, nada, absolutamente nada, vocês acompanhem meu raciocínio, essa família está comendo resto de lixo, lixo, lixo. Após as devidas considerações sobre a fome, o lixo, o nordeste e os políticos desse país, um fone de ouvido é colocado em Kelly Cristina, você está me ouvindo meu amor, quantos anos você tem, cinco, senhores telespectadores, cinco aninhos e já sofrendo com a miséria, com o descaso, a falta de vergonha de nossos governantes, o repórter-lebre se agita, Kellyzinha, o apresentador quer falar com você: - Queria estudar, ajudar minha mãe, ela repete automaticamente, voz sem inflexão, o que o repórter lhe fala por trás das câmeras da televisão, repete minha filha, repete, Kelly Cristina repete, a menina repete a frase, tô cansada mãe, a mãe a cutuca, fala filha fala, que ocê qué sê artista pra ajudar nóis, fala filha, e Kelly Cristina repete e repete e repete, o pai e mãe são mostrados na televisão, nunca tinha reparado que o pai não tinha os dentes da frente, nem que a mãe era tão arcada pro lado, a lebre a olha com seu olho vermelho, vez em quando tapa o nariz de lebre e suas orelhas grandes balançam desassossegadas. Kelly Cristina é colocada num banquinho, ganha uma boneca, doação da nossa querida Casa Zona Leste Feliz, guincha a lebre, o casal recebe uma cesta básica, mais uma doação de nossos queridos amigos da clínica de beleza Novos Horizontes, murmura a outra figura que Kelly Cristina não identificou, mais um kit de beleza da mesma clínica para o qual a mãe da menina olha com genuíno espanto e nesse ponto entram os comerciais, as luzes dos refletores se apagam a lebre reclama, nossa que horror nunca vi um lugar tão fedido, a outra figura acena com a cabeça em assentimento, alguém passa distraidamente a mão pela cabeça da menina, ela desce do banquinho, a escuridão rola pelas cabeças, Kelly Cristina senta-se novamente no ferro retorcido e volta a sonhar com o carrossel do parque e seus cavalinhos azuis.