Conversando com Hugo
Descrever os pormenores dos aspectos físicos, o fenótipo e as características marcantes de suas personalidades, aquelas mais notáveis, o caráter individual e moral, representa para mim uma ousadia. Mas representa também entrar em uma esfera que sempre me ajuda a entender o desejo do informante ao me confiar sua história para divulgação. Assim, inicio este ensaio descrevendo Hugo, seu personagem central.
Não conhecia Hugo, ele chegou à minha porta trazendo um bilhete de uma amiga: Gilberto, por favor, ajude o nosso amigo Hugo. Ele precisa de uma revisão em seu trabalho de especialização. Grata.
Aquele senhor à minha frente não parecia um estudante de pós-graduação. Imaginei logo que deveria ter uns 70 anos de idade. Corpo franzino, baixa estatura, cabelos grisalhos, olhos azuis sem muito brilho, vestindo calça branca e camisa de linho bem passada, também da cor branca. Aparentava muita timidez. No geral, uma pessoa de aspecto rígido, mas de semblante agradável, daqueles que só os pais de boa índole deixam transparecer perante seus filhos amados. Não digo que com cara de Papai Noel, pois seu fenótipo não dava para tanto, mas transmitia bastante tranquilidade.
Mandei-o entrar e sentamos à mesa para conversar. Ele relatou as suas dificuldades e eu garanti que, na medida do possível, iria ajudá-lo. Fiquei com o seu material para ler e marquei novo contato para cinco dias depois.
Ao ler o seu artigo percebi que ele havia explorado pouco o tema que havia escolhido para defender em banca. Tudo estava ali: introdução, os pré-textos, o resumo, Abstract, introdução, capítulos, metodologia, conclusão, referências bibliográficas e os anexos. Mas, faltava aquele algo mais, a sua experiência, o que ele estava levando daquele curso para a sua vida profissional e pessoal. Esta pergunta eu fiz quando ele retornou na noite marcada para o nosso segundo encontro.
Completando seus sinais de personalidade, Hugo relatou que por mais de trinta e cinco anos serviu o Exército Brasileiro e deu baixa como Subtenente, depois de passar pelas categorias de soldado, cabo e sargento em seus três níveis da carreira. Trabalhava sob pressão, sendo comandado e comandando homens, no ambiente disciplinar rígido da caserna. Marchar, fazer exercícios, estudar, obedecer, ser obedecido, fazer o serviço do quartel, deixando-o impecavelmente limpo e em ordem. Ele confessa que tudo isso o fez um homem sem muita habilidade para as coisas civis. Os contatos sociais, os passeios, as festas não faziam parte de sua vida.
Nem o casamento o fez mudar de comportamento, pois a esposa era também de comportamento arredio, não gostava de sair de casa, nem mesmo visitar os parentes. Como Hugo passava a maior parte de seu tempo no quartel, isso não o preocupava, nas folgas só queria ir para casa, para desfrutar o seu passatempo preferido, cuidar de seus pássaros. A reforma veio e esta atividade já não lhe satisfazia. Estava se sentindo um inútil, seu corpo, mesmo com pouca estrutura, estava ficando pesado, cansado. Ele precisava fazer algo. Assim mesmo, levou a vida até saber que havia um curso de pós-graduação em Biodança. Procurou saber do que se tratava e poucos dias depois estava matriculado.
No curso, tomou conhecimento que para se ter vida saudável era necessário colocar o corpo em movimento, porque vivência sem corpo é totalmente impossível. O corpo representa o ser, seja onde for, ele tem que estar presente. Somente acontecerá vivência com a manifestação ativa e participativa do corpo físico.
Hugo passou a relembrar os resultados e a eficácia de algumas vivências, quão agradável era o abraço final, tinha efeito animador, tranquilizante e grande afetividade. Temos mesmo uma família unida não por consanguinidade, mas pelo amor espontâneo de cada um. Que une mais do que o próprio parentesco, que muitas vezes não existe sequer um bom relacionamento. Mesmo assim, sempre que ouvia falar em vivência, ficava tenso, sentia-me bem inseguro. Isso para mim era novidade, e em parte comprometedora e de muita responsabilidade, sentenciou Hugo.
Ele continuou falando: - Agora mesmo, passados alguns meses do término do curso, quando memorizo alguns eventos, sinto aquele friozinho na barriga. A vivência é como se estivesse perdido no deserto, sem bússola e sem trilha a seguir, onde o único “instrumento” a utilizar neste caso é o bom senso.
A vivência, para Hugo, sempre foi “problemática”, e quando ouvia falar em vivência sentia uma sensação diferente. Parece mesmo que toda a vivência tem pelo menos uma pitadinha de “mistério”, mas é apenas aparência, dizia ele sem muita confiança.
Para ele, por mais experiente que uma pessoa seja, durante certas vivências poderão ocorrer alterações em sua personalidade, e até mesmo perder o próprio controle, pois a vivência não está totalmente subordinada à consciência humana. Segundo Hugo, sempre sentia certo desconforto e ficava bastante preocupado, quando era solicitado a escolher seu par. E esse estorvo o acompanhou do primeiro ao último dia, no encerramento do curso. Na última vivência sentiu-se entre a cruz e a espada. Mas, graças à escolha que ele fez – pela primeira vez durante o curso – tudo aconteceu dentro da tranquilidade que ele sempre sonhara. A agradável companhia de sua querida colega de curso e parceira nessa vivencia foi decisiva para que ele presenciasse a beleza do pôr do sol e logo em seguida a tenebrosa escuridão da noite, que encobria toda a formosura das paisagens que contemplavam juntos.
Ele me confidenciou que não sabia explicar o que aconteceu, pois, em poucos minutos, se incorporaram nele os sentimentos de “escritor” e “poeta”. As batidas de seu coração aumentaram de frequência, sua pressão ultrapassou os limites suportáveis ao ser humano em seu estado normal, a temperatura de seu corpo subiu aos 40ºC, condição impossível de se encontrar explicação nos anais das ciências médicas. Ele nunca havia escrito um versinho sequer, nem de brincadeira. Mas, ao mergulhar nas profundidades das águas do açude que estavam a contemplar e emergir poucos minutos depois sua alma alcançou a infinitude dos céus, onde teve contato com seres divinos que lhe sopraram os versos necessários a declarar àquela menina-moça, iluminada pela lua que espargia seu brilho sobre o ambiente a sua frente, parecendo mais bela e encantadora. Os olhos de Hugo brilhavam, seu corpo estremecia, seus passos vacilavam, mas ele encontrou força e coragem para se aproximar da garota e se declarar:
Como é linda a natureza,
a noite mais bela e pura
e eu estou acompanhado
da mais linda criatura.
Será que estou delirando
da sala de aula aqui,
mas meu coração me disse:
É a beleza da Lili.
Aqui fica meu abraço
com toda a sinceridade,
segurar tua mãozinha,
foi para mim, a mais pura felicidade.
Lili solicitou para Hugo repetir, e ela anotava em sua agenda as frases ditas pelo colega. Um pouco envergonhado ele pediu para ler o que ela havia anotado, não entendeu nada. Tornou a ler e aí a coisa se complicou. Procurou um dos colegas e solicitou que ele lesse seus versos, recebendo sua aprovação: Hugo está ótimo, é isso mesmo.
Depois de cada vivência, cada aluno tinha que fazer uma reflexão sobre o momento, sobre a prática vivenciada. Nesse encontro Hugo foi o último. Para seu espanto, todos aprovaram seus versos e ele até foi ovacionado. Ao olhar para a colega homenageada, notou que ela chorava. Outras colegas também enxugavam as lágrimas que teimavam em deslizar pela face. A professora havia avisado no primeiro encontro, que ali tudo era possível, eles iriam estudar, dançar, cantar e, algumas vezes, até chorar.
Feliz e dizendo que mudara para melhor por causa do curso, Hugo não mais se esconde atrás de sua timidez, procura locais de vivência como clube da terceira idade para dançar, fazer passeios em grupo, visitar parentes e amigos, participar de atividades esportivas e atléticas, andar no calçadão da Beira-mar com amigos, enfim, ele é outra pessoa.
Ao final de nossa conversa ele deixou um legado de sabedoria: O homem tem opção de escolher como deseja viver neste mundo. Se desejar viver em paz com a humanidade e com a própria criação basta ser justo e distribuir amor nas mais diversas modalidades. Se desejar viver eternamente em guerra, basta que desenvolva a indústria bélica, não para a defesa própria, mas para praticar a injustiça, desrespeitar as leis internacionais, ceifar vidas humanas inocentes ou mutilá-las para o resto da vida. Essa gente distribui, além do armamento, forte “dose” de ódio que é a causa de todos os males. E para finalizar, acrescentou: estou falando do dualismo que habita nossa consciência. O Bem e o Mal, Deus e o diabo. Se não fosse o diabo, Deus seria ocioso. Fazer o quê? Aliás, nem existiria. Para que serviria o médico se não existisse a doença?