A Tabuleta

Primeira Parte

A tabuleta na porta pantográfica da livraria dizia: “Coleção completa de Augusto Lavras. 15 volumes. R$ 150,00”. A loja estava inteiramente fechada e sobre a porta incidia o sol forte das onze e meia, incomum naquela cidade serrana do interior no início de outubro. Ao lado, também com o mesmo tipo de porta, porém suspensa, algumas moças bebiam cerveja no interior do bar. Algo também incomum no local, apesar deste século 21. Um homem gordo, bigodes espessos atrás do balcão. Não parecia ser o dono.

Ao lado do bar e da livraria outras lojas existiam, todas com a mesma largura, todas fechadas, à exceção do bar. Ao longo do meio-fio poucos carros estacionados. Poucas crianças brincando do outro lado da calçada, que dava para um lago a uns três metros abaixo do nível da rua. O homem parou diante da livraria. Olhou detidamente a tabuleta na porta. Depois percebeu que as moças no bar faziam comentários possivelmente jocosos que não podia ouvir. O gordo atrás do balcão lavava copos. Prendeu com o pedal a bicicleta no meio-fio e atravessou a rua. Percebeu que capivaras banhavam-se em montes de lama próximos às bordas do lago.

Nos poucos carros que passavam, mulheres jovens e bonitas na direção. Não eram dali. O homem olhava-as com avidez. Seu olhar quase sempre não retribuído. Olhavam-no por um segundo para logo em seguida repelirem-no, desviando bruscamente a direção do rosto. O homem considerava normal essa reação. Não era jovem, embora não estivesse acabado. Não era magro, embora estivesse apenas cheiinho. Não era mais que comum. Suas roupas eram comuns. As poucas crianças na calçada pareciam não perceber a sua presença.

Deteve-se um pouco mais na admiração das capivaras. Embora elas não o olhassem, sabia que não seria repelido. Logo em seguida decidiu voltar ao hotel. Atravessou de novo a rua, desprendeu a bicicleta do meio-fio e dessa vez não teve a contemplação discreta das moças no bar.

Desceu a rampa suave, maravilhando-se com os ipês de flores amarelas sobre o passeio. Não se lembrava de ter visto árvores desse tipo em sua cidade de origem. Considerou no mesmo instante o peso de sua barriga e a flacidez de seu corpo, um pouco cheiinho. Imaginou que pedalar contribuiria para o emagrecimento. Mais adiante contemplou de cima o parque principal da cidade, entrecortado aqui e ali por pequenas pontes sobre lagos certamente pouco profundos onde, distraídos, marrecos ou patos nadavam. Aqui o número de meninos e meninas era maior. Mães despreocupadas seguiam-nos, algumas com seus cachorrinhos, que de tão pequeninos pareciam feios.

A rua do hotel ficava à esquerda do cruzamento entre as duas ruas principais da cidade. Não havia semáforo. O tráfego era inexpressivo. Na verdade o hotel ficava numa travessa sem saída pavimentada em paralelepípedos. Alguma vegetação surgia entre as pedras, principalmente nas laterais do pavimento, reforçando a impressão de tranqüilidade e desejável abandono. O homem lamentou não dispor de uma máquina para fotografar aquela vegetação teimando em imiscuir-se entre as pedras. E fotografar também a fachada do pequeno hotel. Que possuía três pavimentos, além do térreo, e era de fato um prédio antigo.

Em cada pavimento quatro janelas de madeira e vidros decorados, com pouco mais de um metro de largura. Todos os quartos de frente. Teria sido sempre um hotel? No andar térreo as mesmas quatro janelas, sempre abertas nos dias sem chuva, sendo duas para uma sala ampla, que era o refeitório, e duas para outra, ambas com as mesmas dimensões. Achavam-se separadas por um corredor onde, à direita da entrada, situava-se a recepção.

Diante do hotel o homem sempre se encantava com a simetria sugerida pela fachada. De certo modo ela intuía uma languidez compatível com a atmosfera do local. O inevitável da rotina. Cadeiras de madeira com tampo estofado, dispostas ao longo da parede frontal, ocupavam parte da largura de dois metros da calçada. Já era assim há dois anos. O homem deixou ali sua bicicleta, também encostada à parede, convencido de que dali ela não sairia mesmo que ele só viesse buscá-la três dias depois, isto é, no dia de sua partida.

Fazer o que agora? Tomar banho e sair de novo para comer alguma coisa? No hotel a diária apenas incluía o café da manhã e o jantar.

Segunda Parte

Augusto Lavras era um escritor famoso no país, com livros publicados em diversas línguas. Apenas um de seus romances o homem não possuía. E ele poderia estar justamente nesta cidadezinha do interior, na coleção oferecida pela tabuleta da livraria. Na verdade, para quê fazer questão deste romance? O homem acreditava que o autor já não era mais novidade. Que poderia até adivinhar os seus textos. Que tinha considerável conhecimento do que pensava o escritor. Mas de repente lembrou-se de que não tinha trazido um livro sequer. A bicicleta tinha sido mais importante. Era a possibilidade de um emagrecimento saudável. Não teria tempo disponível para ler. À noite dormiria cedo, provavelmente cansado das pedaladas durante o dia.

Mas não custa nada conferir. Ver se esta coleção é mesmo completa. É um programa para amanhã de manhã, segunda-feira, dia de trabalho mesmo nesta cidade-descanso.

O hotel era praticamente freqüentado por pessoas solteiras de meia-idade. Embora direcionado à clientela de poder aquisitivo médio, o hotel selecionava seus hóspedes. Com isso a casa acabou restrita a um grupo específico, que se renovava a partir de indicações de seus próprios integrantes. Isso tornava o empreendimento lucrativo. O que não era o mais importante para o dono. Que, aliás, ninguém sabia quem era nem onde vivia. O gerente sempre dizia que estava viajando.

Era normal que muitos hóspedes se conhecessem, o que não era garantia de se freqüentarem. Havia muitas excentricidades e junto delas a preferência pelo individualismo. O homem era um desses exemplos. Reconhecia que não podia ficar muito tempo com alguém. Cansava-se primeiro de si mesmo. Se o relacionamento fosse no primeiro dia excepcional, havia grandes chances de o encontro repetir-se no dia seguinte. Como as excepcionalidades pertencem ao conjunto das raridades, esse encontro nunca se repetia.

Dirigiu-se à recepção, perguntou se havia algum recado e saiu de novo em direção ao bar da esquina da travessa. Pediu um “bauru”, um suco de laranja e um conhaque. O empregado atrás do balcão franziu a testa, estranhando o pedido. Eram apenas quatro bancos de assentos redondos a 90 centímetros do chão. Uma geladeira antiga de portas de madeira, com as dobradiças e ferragens oxidadas, chamava atenção pelo tamanho, embora ao fundo do bar fosse precária a iluminação. Garrafas de bebidas nas prateleiras de 2 metros de altura que se estendiam por toda a parede atrás do balcão. Sobre o balcão um recipiente ovalado de vidro, com quatro bocas, cheio de balas. Ficava à direita do último banco, próximo à caixa, na curva que a fachada fazia ao acompanhar o meio-fio na esquina da travessa. Não demorou muito e um garoto franzino, uns dez anos talvez, pele bem morena, cabelos negros e cacheados, sentou-se no banco próximo à caixa. Sem qualquer cerimônia, abriu a tampa enferrujada de uma das bocas do vidro de balas e retirou duas. Em nenhum momento olhou o homem ou o empregado atrás do balcão. Este acabava agora de preparar o suco e o servia com o sanduíche e o conhaque.

O homem ficou olhando o menino desde que este entrou no bar. Sandálias de dedo finas, calcanhares sujos, calças curtas de tecido grosso, de um azul desbotado, blusa branca de botões, o colarinho puído. O homem desconfiou que aquela era a criança que um dia ele talvez tivesse sido.

-Você quer um lanche?

O menino fez que sim com a cabeça, continuando a olhar o vidro de balas. O empregado foi preparar mais um “bauru” e outro suco de laranja. Quando a refeição foi servida, o menino olhou para o homem e sentiu que continuava sendo observado pormenorizadamente. Seus olhos negros e bem abertos não disfarçavam o que pensava ou sentia. Fitavam os olhos do homem com espanto e demorada atenção. Revelavam também uma indesejável frieza, imediatamente percebida pelo homem.

Levou pouco mais de 8 minutos o consumo da refeição, ao fim dos quais o menino saiu sem se despedir ou olhar para trás.

-Criança mal educada, hein, he, he, he.

Sem responder ao empregado do bar, o homem pagou a despesa e voltou de novo ao hotel. Pegou a bicicleta e se dirigiu a Colorido, uma localidade distante cerca de 10 quilômetros da cidade onde estava. Seria o programa da tarde.

Não levou mais que 15 minutos para deixar a rua principal, pavimentada agora em asfalto, e transitar em seu seguimento, ainda em saibro batido. Afastava-se da cidadezinha. De lojas praticamente sem letreiros, sendo pouquíssimas as que se viam à noite com letreiros iluminados na rua principal. Como era bom pedalar no barro. A bicicleta andava melhor. Nem era preciso ladeira. Por sinal, as rampas nunca eram muito acentuadas no local.

O cheiro do mato. Quem não amava? Disponível realmente a todos? Poucos cavaleiros nas laterais da estradinha de terra. Seus arreios pobres, suas roupas surradas de algodão, e o indefectível chapéu velho e poeirento. Mulheres sempre a pé, escondendo sob as saias de chita (ou agora calças de brim) volumosas coxas certamente sempre mais claras que a cor morena de seus braços e rostos. Não só os raios do sol da tarde, de vigor incomum nessa época do ano por ali, aqueciam a cabeça do homem. Um arremedo de intumescência entre suas pernas, e não fora provocado pelo roçar do celim.

Um negro pássaro grande, um pequeno pássaro branco.

Terceira Parte

Mais 15 ou 20 minutos e o homem adentrava Colorido. Casinhas baixas e pequenas, algumas ainda de pau-a-pique, apenas de um lado da única rua, que continuava sendo o seguimento da estradinha de terra. Do outro lado um valão, curiosamente não poluído. Devia haver uma liderança no local. De fato a qualquer momento podia ser encontrado aquele homem de túnica cinza encardida, andando de um lado para outro, cabelos compridos e barba por fazer.

Uma réplica do Conselheiro?

Grande Euclides da Cunha,

Outro produto brasileiro.

Era quem menos o homem procurava. Havia sim a morena, de olhos castanho-azuis, que não era certamente a mãe do menino do bar. Mas talvez uma tia de quem o garoto nem soubesse. Nunca soubera seu nome, mas como esquecer o veludo de suas coxas grossas e o sabor almiscarado dos lábios escondidos entre suas pernas sob espessos pelos negros?

O homem e a sua bicicleta. Eram talvez quatro e meia agora e eles não faziam a mínima diferença em Colorido. A tarde caía com pressa e logo estaria escurecendo. Nenhum sinal da morena. O irremediável: era hora de voltar. Perder mais uma vez? Sim, é isso.

Pedaladas lânguidas, ora muito sofridas, ora um pouco jubilosas. De novo o negro pássaro grande e depois o pequeno pássaro branco. Muitos cavaleiros agora, voltando para Colorido. Nenhuma moça de coxas volumosas sob a saia de chita além das do pensamento dele.

O homem chegou com o cair da noite ao hotel. O jantar seria servido a partir das sete.

Quatro mesas na sala de duas janelas voltadas para a rua, mantidas abertas até a essa hora porque a temperatura era agradável. As cadeiras já tinham sido retiradas da calçada. Finas cortinas de cetim cobriam os vãos das janelas de pouco mais de um metro de largura e dois de altura. Acariciadas pelo vento suave de fora, produziam o mesmo efeito repousante das ondas pequeninas ou marolas na Praia Rasa de Búzios. O homem lembrou-se da última vez em que estivera em Búzios. Provavelmente tinha na época a mesma idade do menino do bar.

Na mesa em frente à sua reconheceu a mulher elegante e charmosa, cinquentona talvez, que encontrou há dois anos, na última vez em que esteve no hotel. Ela sorriu e ele respondeu com um gesto. Surpreendeu-se depois com o próprio aceno que fez para que ela se sentasse à sua mesa.

A conversa teve um início animado. Chegaram até a evocar ruidosamente lembranças do período em que estiveram na cidade há dois anos. Pouco havia mudado. O lago no parque principal talvez tivesse mais patinhos que agora. O hotel não tinha passado por reformas. A pintura dos cômodos e da área social era a mesma. Isso falaram baixinho, embora a recepção ficasse um pouco afastada. A população parecia não haver aumentado. As lojas continuavam sem letreiros luminosos.

A conversa começou a cair no fim de 25 minutos. Terminada a refeição, ela tentou ainda retê-lo, convidando-o para um chá ou café na mesinha ao lado da recepção. O homem esmerou-se na recusa ao convite com a alegação do cansaço produzido pela viagem feita de bicicleta a Colorido. Colorido? Havia tal lugar aqui? Ele deu as explicações necessárias, com a maior brevidade possível, desculpou-se e subiu para dormir.

Final

Acordou próximo das seis com o canto de um galo num terreno provavelmente aos fundos do hotel. Alegrar-se ou ficar tristonho? Venceu o primeiro impacto. Sorriu feliz afinal. Mas sorriu de si mesmo. Na verdade, porém, escutar o canto de um galo..., só mesmo numa cidadezinha como esta.

Às sete e meia desceu para o café, esforçando-se para não desejar ardentemente que o salão estivesse sem ninguém. Era preciso lutar contra essa coisa de querer ficar sozinho. De fato havia apenas um hóspede, ocupando a mesa próxima a uma das janelas. Era um senhor de óculos e bochechas salientes, de cabelos negros e luzidios, uma indicação de que haviam há pouco sido lavados. O homem jurava que este senhor era médico.

Terminou o café. Apanhou a bicicleta, ainda sobre a calçada, encostada junto à parede do hotel, e considerou a necessidade de enxugar as gotas de sereno espalhadas pelo quadro, guidom e celim. Utilizou-se para isso de um pano conseguido na recepção.

Movimentou-se depois pela travessa de paralelepípedos e serenamente deslizou pelo asfalto da rua principal até ao lago das capivaras. Diante do qual estendia-se o conjunto de lojas de portas pantográficas, sendo uma delas a livraria. Surpreendeu-se com o forte desejo de encontrá-la fechada, com a tabuleta na porta. Isso de fato aconteceu e o homem, espantado, percebeu que se encontrava naquele momento feliz.

Não parou dessa vez, mas não deixou de procurar no bar ao lado as moças dos comentários jocosos. Não encontrou ninguém, além do empregado gordo de bigodes que não desprendeu o olhar do jornal que estava lendo.

Continuou pedalando e pensou em ir à Barreado, outra localidade na direção contrária a Colorido, mas distando o mesmo da cidadezinha principal. Desistiu do intento, preferindo jogar restos de pão para os marrecos no parque. Mesmo que ali não encontrasse uma morena de coxas não necessariamente tão volumosas.

Às doze e trinta pediu no bar da esquina o mesmo lanche do dia anterior, trocando apenas o “bauru” pelo “americano”. Não viu o menino de calças curtas de tecido grosso com aquele azul desbotado.

Pegou a bicicleta e dirigiu-se de novo ao lago das capivaras na esperança de encontrar a tabuleta sobre a porta fechada da livraria. Encontrando-a aberta dessa vez, teve de entrar.

-Essa coleção do Augusto Lavras é mesmo completa?

-É sim. O cavaleiro quer conferir?

-O senhor vende volumes separados?

-Sem problemas. Que volume o senhor deseja?

-Será que vocês têm “O Cabeleira”?

-Vamos dar uma olhada.

O atendente dirigiu-se até ao local onde se achavam os livros do renomado escritor. Até este momento ele não havia olhado detidamente o homem, embora tivesse se esforçado em atendê-lo com polidez. Pensou que iria achar o livro com facilidade, mas viu que não o estava encontrando.

-Tá difícil?

-É, realmente não estou achando, falou o atendente sem tirar os olhos da prateleira. Na verdade substituo meu irmão, que é de fato o dono da livraria. O senhor tem certeza de que o nome é este, “O Cabeleira”?

-Claro. Li todos os livros dele. Sei seus conteúdos quase que de cor. Não acho “O Cabeleira” em lugar nenhum.

Só então o atendente deteve-se com atenção na figura do homem à sua frente, em que se destacava a vasta cabeleira negra, terminando em bordas cacheadas na altura do pescoço. Procurou no rosto fino e moreno diante de si algo além daquilo que o sorriso triste e amarelado do homem parecia manter escondido. Notando essa insistência, o homem apressou-se em sair.

Voltando-se sem se despedir, pegou a bicicleta que havia deixado presa no meio-fio, montou no celim e se foi, sem olhar para trás.

O atendente apressou-se até à porta, deixando seus olhos perdidos no homem que pedalava.

Ao aproximar-se do final da rua, antes de fazer a curva para se dirigir de novo ao hotel, o homem não viu, sentado sobre o banco na calçada em frente à praça, o menino a quem pagara o sanduíche. O menino deteve-se um instante na figura apressada do homem sobre a bicicleta. Que parecia ir buscar alguém, prender alguém. Tomar algum menino como ele dos braços de sua mãe. Lembrou-se do menino chorão que tinha sido, quando mais novinho, e da quadrinha que sua mãe lhe cantava e que logo o fazia engolir o choro:

“Fecha porta, Rosa,

Cabeleira eh-vem

Pegando mulheres,

Meninos também!” (*)

A mesma calça azul de tecido grosso desbotada, o cabelo cacheado esvoaçante na brisa da tarde, o sorriso indescritível no canto esquerdo da boca. Cabeleira levando pra longe o medo nenhum.

(*) GILBERTO FREYRE, Casa Grande e Senzala, Rio, 1998.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 28/08/2012
Reeditado em 29/08/2012
Código do texto: T3854274
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