O Eterno Beijo

A chuva fina tilintava no asfalto,de forma poética . Uma ventania sibilava entre os prédios daquele bairro barra pesada fazendo com que as copas das árvores sacudissem,de forma assustadora. Ruas desertas. A passos largos, Andrea seguia na direção da casa de sua avó materna. Vestia um sobre-tudo e escondia o rosto com o capuz protetor de chuva de peça da roupa - talvez, assim escondesse o seu rosto de linda mulher, e se livrasse da iniciativa marginal de algum desajustado social, que porventura, estivesse disposto a cometer um crime naquela noite tão propícia ao delito contra a pessoa humana. A roupa folgada-um sobre-tudo- escondia as suas formas femininas( os seios e o bumbum ficavam camuflados) fora escolhida de forma intencional. Temia sofrer uma violência sexual, desde criancinha tinha esse pavor. Muitas vezes se imaginava numa situação de estresse extremo, sendo perseguida por um homem estranho, que tinha um único objetivo abusá-la. Jogá-la ao chão com violência, arrancar a sua calcinha e seviciá-la, com violência total. Isso a fazia delirar de horror. Quando andava à noite, por ruas escuras, desertas - esse temor lhe assaltava o ser, angustiando-na. Os passos apressados se seguiam fazendo soar uma sinfonia de saltos se chocando na calçada.

Toc-toc-toc-toc...toctoctoc...toc...toc-toc-toc-toc..toctoctoc...

Seguia assim olhando para trás, para os lados. Ao se aproximar de um beco escuro, olhava para dentro do mesmo, como se aguardasse que dali, saísse o agressor, com sua fúria, suas taras-a sua mente doentia,pervertida. Uma mente pertubada, que se realizava na prática de um prazer reprovável,censurável,repugnante. O gozo com a dor do outro. A humilhação, a agressão, a violência sem limites.

Raridade um carro ou outro passar, de forma veloz pela pista livre. Caso passasse uma viatura da PM, talvez a deixasse mais aliviada, um tanto tranquila. Os metros eram vencidos, de forma veloz, passos apressados.

A respiração ofegante, faltava o ar nos pulmões. O coração palpitava. O olhar fixo na rua á frente, onde seria o seu destino. " Será que chegarei sem que nada de mal me aconteça"? - Interrogava-se.Orava,pedia a Deus.

A cada rua vencida, um alívio angustiante. Pretendia repousar com a avó, que estava meio adoentada. O seu carro estava quebrado. Pegou o ônibus, que a deixou um quarteirão atrás - havia descido, por engano - já que tem um ponto de ônibus defronte á residência de sua avó. Seguia praguejando, e orando - pedia a Deus que a protegesse dos criminosos. "A violência é o grande mal do século - aliás, de todos os séculos."Sempre levava na bolsa alguma grana para o ladrão, caso fosse assaltada." Os ladrões espancam ou matam vítimas que nada possuem de valor", avisava sua avó.

Imagina, que vida essa, ter que sair pronta para ser assaltada - vida moderna- segurança pública falida - "a qualquer momento, pode-se ser assaltada, estuprada,assassinada" - pensava. Seguia reclamando. A chuva crescia em intensidade. Quando ja estava na porta, viu de soslaio, o relance de um vulto a observá-la. " Seria agora"?

Peguntou-se.

- Quem está ai...?

Do escuro, ele respondeu. Fumava um cigarro dos chamados mata-rato. O odor invadiu as suas narinas.

- Não precisa ter medo, moça bonita. Sou morador do bairro, sou vizinho. sei que veio visitar a avó, ela ja está melhor.

Soou a tranca , sua avó abriu a porta, de forma vagarosa. Andrea entrou sem dar atenção ao estranho.

" Graças a Deus..."

Rápida, fechou a porta. Sentiu a mudança de temperatura ambiente, se livrou do sobre-tudo, que ja estava enxarcado.

" Impressionante esse meu medo de morrer."

- Minha avó, precisa sair desse bairro, está a cada dia mais violento, sombrio e abandonado pelo poder público. Uma vizinhança...

- Ora, meu bem, moro aqui há mais de 30 anos, nunca me fizeram mal. Ja vi quadrilhas surgirem, morrerem. Jovens marginais fazerem carreira, depois serem presos, ou mortos. Ja presenciei todo tipo de violência. Estupros, assassinatos, brigas de vizinhos, confrontos mil entre a polícia e os marginais. Ah, se eu for parar pra te falar, você nunca mais voltará pra falar comigo. Moro num dos bairros mais sombrios da cidade.

Dizia a velha, com voz rouca, pousada e soltando risadinhas, entre uma frase e outra.

- Menina, devia ter vindo de carro, ficaria mais fácil, nem precisa dizer, mais uma vez saltou no ponto errado.

Sentaram na sala e tomavam um chá pra esquentar o frio e quebrar o gelo. Era uma senhora de quase 90 anos de idade, lúcida e de forte mobilidade.

- Para quem acha que estou no fim da vida, tenho uma grande surpresa, ainda vou enterrar muita gente.

Dizia a velha exibindo um largo sorriso na sua enrugada face. A neta permanecia calada, parecia não querer papo. Via as bobagens da tv, e folheava uma revista com notícias das novelas. Olhava a senhora idosa se locomover pela casa, tomar seus remédios, arrumar suas coisas e se aprontar para dormir. Usava meias para dormir, mesmo no verão.

- Não precisa vir pra ca, eu avisei, aqui é monótono. Não tenho computador nem internet. So tenhos livros na estante. Jorge Luís Borges, Poe, Bukowsky, Jorge Amado, Machado de Assis.. Sua cama ja está arrumada. Tem chocolate com leite e biscoitos na cabeceira de sua cama. Tem frutas, se quiser na fruteira.

Depois de alguns minutos, Andrea resolveu se recolher. Foi no quarto da avó, observou-a deitada na cama. Aproximou-se, sentou na cama, curvou o seu tronco e lhe deu um beijo na face. Ouviu o vento nervoso sacudir a vidraça da janela do quarto, a chuva voltara com intensidade, noite sombria, sem lua.

Saiu do quarto da idosa, com maus presságios, talvez, fosse aquela a sua última noite de sono seguido do amoroso e eterno beijo de neta.

LG

Um conto para os que amam os avós,e que precisam saber que a morte não os separam.

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 24/08/2012
Reeditado em 24/11/2017
Código do texto: T3847428
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