INUNDAÇÃO NO METRÔ

André foi o primeiro a adquirir o jornal naquele domingo porque era a data em que seria publicado o resultado da concorridíssima seleção para ocupar os vinte novos postos de trabalho na Empresa Metropolitana de Trens Urbanos, conhecida de todos pelo nome simplificado de Metrô.

Seriam preenchidos os mais diversos cargos nas áreas administrativa, operacional e de serviços.

André se candidatara ao cargo de operador de trens, maquinista, como se chamava antigamente, e se aprovado, trabalharia no setor Operacional.

Total de inscritos 2780 para 27 vagas. Média de 102,96 pessoas para cada vaga.

Média aritmética é coisa engraçada. Onde já se viu 0,96 de gente?

Mas de qualquer modo ele teria que eliminar 103 pessoas para que uma das vagas fosse a sua e, maravilha das maravilhas, lá estava o seu nome grafado bem abaixo dos seis primeiros colocados que, por mera coincidência, tinham os mesmos sobrenomes do prefeito, do presidente do metrô, do juiz da comarca e de três dos mais atuantes vereadores, entre eles o presidente da câmara.

Eufórico André correu para casa, pegou a pasta com a página do jornal onde constava o edital de convocação e conferiu, pela enésima vez, a documentação exigida para a inscrição, pois, esses mesmos documentos seriam usados para a admissão e, juntou a página do jornal onde saíra o resultado.

Na segunda feira antes das oito da manhã, ainda em jejum, André estava com as requisições dos exames necessários para a admissão.

Os resultados estariam prontos quatro dias após e nessa mesma data André recebeu o comprovante de sua admissão ao serviço público.

A posse foi marcada para o primeiro dia útil do mês seguinte.

Uma vez cumpridas as formalidades André foi encaminhado ao chefe da Engenharia de Tráfego a fim de fazer o treinamento.

Recebeu as apostilas e a recomendação de que lesse todo o material porque logo após o almoço começariam as aulas práticas, os novatos eram cinco, ele e mais quatro, sendo duas moças.

No corredor das salas da engenharia, André viu um senhor de macacão caqui, com uma roda de cabo de alumínio pendurado no ombro esquerdo e na mão direita o capacete de plástico na cor laranja com três ranhuras, indicativo da alta posição no setor de eletricidade que o mesmo ocupava.

O homem estava parado, olhando fixamente para eles. Enquanto os outros se afastavam, André perguntou:

- O senhor precisa de ajuda? Quer que leve o cabo?

- Oh! Não. Esse cabo é muito leve só serve mesmo para a fixação das linhas de transmissão, acho que nem chega a dez quilos. Mesmo assim, muito obrigado.

- Mas se precisar, avise. Eu estou aqui para isso mesmo.

- Você é um dos novatos?

- Sim. Cheguei hoje. Sou André e vou ser maquinista.

- Pois seja muito bem vindo. Você me faz lembrar o meu filho que chegou assim, como você, e hoje é engenheiro.

Eu sou Tibério Medeiros e trabalho na manutenção desde...

Faz tanto tempo que nem lembro mais quantos anos.

Vamos nos encontrar nesses buracos sem fim...

Ambos riram e Seu Tibério entrou numa das portas.

- Por aqui! Ei! Vocês... Entrem.

André e os demais entraram numa sala ampla onde um aparelho simulador imitava a cabine do trem, com pedais, alavancas, interruptores, joystick (semelhante ao de helicóptero), microfone e tela grande.

- Eu sou o engenheiro Medeiros, sou o engenheiro chefe, quer dizer o responsável direto por tudo o que acontece no metrô.

As coisas boas passam sem ninguém notar, mas as ruins, as cagadas de todos, caem diretamente em minhas mãos.

E apontando para a máquina, esse brinquedinho vai ser o trabalho de vocês até que tenham completado 100 horas de operação.

Os programas simulam todas as ocorrências possíveis, desde as mais simples, como fazer o trem andar e parar, ou os cabeludos como obstáculos nos trilhos e até desmoronamentos.

A máquina só passará para o estágio seguinte quando a reação de vocês para o problema estiver dentro do tempo adequado.

Lembrem-se de que no serviço real, centenas de vidas estarão em risco se vocês não souberem o que fazer ou tomarem a decisão errada.

O trabalho de um maquinista é solitário e exige muita concentração, por isso vocês terão que praticar individualmente.

Essa sala funciona 24h e é bom que vocês treinem de dia e de noite para se acostumarem porque o serviço é por escala e tanto faz começar às quatro da manhã como às dez da noite e vocês terão que estar atentos, de olhos bem abertos, principalmente, para os mínimos detalhes.

Todas as sinalizações terão que ser obedecidas, mesmo porque vocês somente sairão para o serviço efetivo quando a máquina disser que estão prontos e aptos para pegar num trem de verdade. Até lá, estudo e treino.

Qualquer dúvida eu estarei na sala 12, bem na frente da porta desta sala.

Se eu não estiver, terá outra pessoa tão capacitada quanto eu para o esclarecimento.

Não fiquem com dúvidas porque elas geralmente fazem muitas vítimas.

A escala de vocês é de 4/16h. Assim vocês cumprirão o treinamento em 25 dias e em todas as horas como no serviço ativo.

Os dias passaram rapidamente e André se sentia seguro com as horas de treinamento.

Vez por outra, pelos corredores, encontrava Seu Tibério e se cumprimentavam com aceno ou um rápido papinho.

Ele sempre estava com o rolo de cabo de alumínio preso no ombro.

Finalmente a máquina expediu o ok e André fez o estágio supervisionado dentro da cabine. Inicialmente como observador, depois operador auxiliar e finalmente chegou o dia em que o engenheiro de tráfego entregou a chave da composição que ele teria que operar só.

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O trem estava estacionado no pátio de manobras e eu o trouxe para a plataforma de embarque de passageiros.

A emoção que senti nesse primeiro dia jamais esquecerei, mas com o passar do tempo, a rotina do serviço fez com que aquele encantamento inicial perdesse o brilho.

O primeiro ano transcorreu sem anormalidades, mas no segundo o tempo chuvoso se prolongou muito além das previsões e num dia de chuva forte, eu estava operando o trem na linha 232 com 35 estações e que transportava em média um milhão e seiscentas mil pessoas por dia.

Era um formigueiro humano indo e voltando durante todo dia.

Entre as estações 17 e 18, o túnel do metrô passava por baixo do leito do Rio Cascalho, numa demonstração da capacidade de superar obstáculos da engenharia civil.

Apesar de não oferecer nenhum risco para a segurança, havia sempre o gotejamento resultante da lenta infiltração das águas do rio naquele monólito de concreto armado, formando minúsculas estalactites.

Essa infiltração era constantemente monitorada porque a energia elétrica, para movimentação das composições, além da rede aérea, tinha contato com os trilhos.

Numa dessas idas e vindas, quando parei na segunda estação, Seu Tibério bateu na janelinha de vidro e fez sinal de que queria falar comigo.

Mesmo contrariando as normas de segurança abri a porta para que ele entrasse na cabine.

Sentado no banco auxiliar ele comentou sobre o volume das águas do rio, grandemente avolumadas naquele final de semana e quando chegamos à estação 15 ele disse que eu deveria levar o trem somente até a próxima estação.

Que desligasse a composição e desse o aviso aos passageiros para abandonarem o trem e a estação imediatamente e que eu fosse também para o nível da rua.

Intrigado com a recomendação, perguntei o porquê daquilo, o que era que estava acontecendo ou que iria acontecer, mas não obtive resposta.

Olhei para o banco, mas Seu Tibério já não estava mais lá.

Os momentos seguintes foram cruciais para a minha decisão de obedecer ou não àquela sugestão dita em tom imperioso.

Eu estava decidido a não obedecer, mas dentro de minha cabeça, ecoaram as palavras do engenheiro Medeiros:

“Lembrem-se de que no serviço real, centenas de vidas estarão em risco se vocês não souberem o que fazer ou tomarem a decisão errada.”;

“Não fiquem com dúvidas porque elas geralmente fazem muitas vítimas.”

Eu era o responsável direto por aquelas centenas de vidas e ao parar na estação 16, falei ao microfone:

- Senhores usuários, por motivos técnicos todo sistema metrô ficará fora de serviço. Por gentileza desembarquem e abandonem imediatamente todas as dependências da estação abaixo do nível da via pública. Cuidado com o vão entre o vagão e a plataforma.

Desliguei o trem e saí quase correndo escadas acima, várias pessoas me seguiram enquanto ouvíamos o som aterrador da inundação tomando conta de todos os espaços abaixo de nossos pés.

Alguns morreram, outros sofreram ferimentos, mas a maioria saiu ilesa.

O revestimento do túnel havia cedido e as águas do Rio Cascalho preencheram o vazio por onde os trens trafegavam.

Muitas horas depois, na sala do engenheiro chefe, quando fui interrogado sobre o que me havia levado a tomar a atitude salvadora eu contei que seguira o conselho de Seu Tibério.

- Deixe de brincadeira rapaz. Seu Tibério já não está mais ente nós. Nesta semana faz cinco anos que ele morreu... (Disse o engenheiro Medeiros, visivelmente emocionado.)

- Não pode ser. Eu encontro quase sempre com ele. Fizemos amizade no meu primeiro dia.

- Seu Tibério foi o nosso melhor mestre, era o encarregado de manutenção, mas foi eletrocutado quando estava recolocando o cabo de alumínio que sustenta e rede...