Metamorfose

 
         Luisa chegou à casa do professor Vicente num dia chuvoso, quando o céu escondia seus olhos azuis, mostrando um semblante irado, sua cara menos agradável. Ruas, alagadas, semáforos apagados, guardas de trânsito atônitos se mobilizavam para atender à solicitação mais próxima. Nesses momentos reflete-se sobre a realidade, o inusitado, que não pedem passagem para irromper de forma avassaladora. A cidade se esquecera de sua rotina depois dos ventos medidos em quilômetros, ensandecidos de fúria; do céu vomitando enormes pedras de granizo: alegria ou tristeza? A Defesa Civil mal dava conta de ordenar o caos. A tecnologia metropolitana se mostrava incipiente, e Belo Horizonte nada mais era, naquele momento, do que um amontoado de fragilidades, interrogações; nenhum Tsumani, mas o vento forte, a chuva pesada deixaram triste o horizonte.
    – Bom dia, Luísa! Seja bem-vinda.
     – Obrigada, professor Vicente.
      – Que tempo, Luísa... Como você conseguiu chegar?
       – Nunca vi nada igual, professor.
     Com esse breve diálogo na porta da casa do seu novo patrão, Luísa entrou, carregando não mais que sua mala, simples, uma sombrinha e uma imagem de N.S.Aparecida. Pouco ou muito pouco, seus únicos bens materiais, frutos de seu trabalho de 20 anos, ininterruptos, na casa de seu ex-patrão.
     Professor Vicente, apesar de apreensivo com o que acontecia na cidade, recebeu-a com cordialidade. Uma árvore caiu sobre o seu muro da garagem impedindo-o de retirar o carro. Suas aulas na universidade e outras obrigações acadêmicas ficariam para depois, quando a cidade se acalmasse.
   – Professor, o que é isso? Sou apenas sua nova empregada e o senhor parece que está recebendo uma visita importante ─ a sua namorada, por exemplo.
     – Não entendi o seu comentário, Luísa!
   – Ora, professor: a recepção, o quarto, TV, até flores... Sou sua nova empregada, nada mais!
     A tarde passou rápido sem TV e energia elétrica, velas iluminaram a casa, o que facilitou a aproximação de ambos, e a falarem sobre suas vidas. A luz afasta de nós o pensamento, a intimidade, a reflexão; no claro a gente não pensa, disse o professor Vicente. Luísa soube que ele, com os seus 45 anos, tinha um único filho, casado, que morava em Roma. Divorciado, não pensava mais em se casar. Suas atividades profissionais: alunos, livros, pesquisa tomavam-lhe todo o tempo. Luísa também era mãe. Uma filha, que morreu prematuramente, de um namorado que lhe prometera amor e casamento, mas sumiu. Gostava de ler. Autodidata.
       Ali, diante de velas, duas pessoas, que nunca se viram, falando de suas vidas, trocando conversa, revelando emoções, passado, história, divulgando fatos. Dois seres com olhos de anjo e rosto de sombra. Sim, velas. A vela acesa é um símbolo cristão: Cristo, Luz do mundo! Esse é o significado do Círio Pascal, vela enorme que se acende no Sábado Santo até a festa de Ascenção. Ela simboliza, ainda, a luz da fé, que nasce de Cristo-Luz. No Batismo, recebemos esse dom; colocamos na mão do agonizante uma vela acesa, sinal da Fé, que ele conservou a vida inteira. E... para as pessoas verem à noite quando falta energia.
      A vida não pára. Removida a árvore, professor Vicente voltou à sua rotina de trabalho. Retornou a sua casa depois de um dia estafante. Agradou-lhe a ordem, a limpeza, a mesa posta para o jantar, e Luísa, nova habitante, com o seu jeito leve, comunicativo, recebendo-o à porta com alegria.
    O jantar transcorreu normalmente. Professor Vicente convidou Luísa para sentar-se à mesa com ele, mas ela não aceitou. Como boa cozinheira, esmerou-se em tudo; como entrada serviu sopa de consommé de carne e salada tropical: ovo, cenoura, tender, abacaxi, uva itália, creme de leite, mostarda; como prato principal: arroz branco e lombo de porco assado; de sobremesa: sorvete de chocolate com morangos. Professor Vicente terminou sua refeição atendeu ao telefone, mas antes agradeceu-lhe o jantar: elogiou-a desejando-lhe boa noite. Sozinha e sem entender nada, vagarosamente, como se a lentidão a ajudasse a decifrar aquele enigma, desfez a mesa posta, observando que seu patrão não tocara na sopa nem na carne; no lombo assado de porco, preparado com esmero. Por quê? Dúvida que lhe tirou o sono. Logo ele, um gentil-homem! e ela tinha consciência de seu dom culinário, em pratos regionais, saborosos, elogiados. Mas sua dúvida foi prontamente esclarecida.
     – Bom dia, Luísa.
      – Bom dia, professor.
    – Estou um pouco atrasado e não vou tomar café, apenas um copo de suco. Como sabe, não almoço em casa: só retorno à noite para o jantar. Está bem?
      – Sim, professor, mas queria lhe fazer uma pergunta. Posso?
       – Sim, por favor!
       – O senhor não gostou do meu tempero, não tocou na carne e na sopa. Por quê?
    – Luísa, me esqueci de lhe dizer: sou vegetariano, não como carne vermelha ou branca.
       – Mas porque o senhor as mantém na geladeira?
    – Não sou sectário, recebo amigos, sempre, e eles são carnívoros. Entendeu?
       – Sim, professor!
     Após o almoço, Luísa recebeu um telefonema do professor Vicente, avisando-lhe que levaria uma colega para jantar com ele; queria algo especial. Se era vegetariana, professor Vicente, rindo, respondeu-lhe que não.
     À noite, conforme combinado, ele chegou com Vera, sua amiga e colega, que notou a elegância da mesa. Expansiva, foi logo se apresentando:
      – Luísa, sou a Vera, muito prazer!
       – O prazer é meu.
      Professor Vicente, logo depois, sem perceber que já se apresentaram, incumbiu-se das formalidades de praxe, ao que Vera retrucou: apenas Vera, sim! Luísa entendeu a delicadeza e gostou.
      Com velas à mesa, o jantar foi servido: dourado assado, arroz, salada de batatas; e como entrada ou hors d`oeuvres: canapés de queijo e anchova. Sobremesa: torta de nozes com rum. “A palavra molhada em vinho de estirpe”, Laurent-Perrier Brut acompanhou os paladares requintados de Vicente e Vera. Após o jantar brindaram à Luísa, pelo excelente bom gosto na escolha dos pratos e perfeição no seu preparo, transformando-os em iguarias delicadas que deleitaram também o espírito. Encaminharam-se à biblioteca; Luísa ali serviria o licor. Nessa oportunidade, ela observou: Jamais vi tanto livros numa biblioteca particular. Estou encantada. Cuido deles com atenção e respeito. Sinto-me aqui como se estivesse no santuário do saber. Professor Vicente por um instante ficou pensativo lembrando-se de alguém que, como ele, amava os livros e escreveu: “Algumas vezes basta olhar a lombada de um deles para receber sua influência, há como uma secreta ligação, como as ondas do mar em relação à Lua. Às vezes sinto seu apelo irresistível, como se me chamasse, e seja em que momento for, retiro o livro da estante e o folheio, para ouvir o que ele tem a dizer. Esses livros determinam meus sentimentos, meus pensamentos, meu entendimento do mundo. Eles são o mapa de minha alma”. Com um olhar rápido a Vicente, de aquiescência, Vera pediu à Luísa que se sentasse com eles. Ela não aceitou; ficou em pé, descontraída, agradecendo o gesto de Vera.
    De alma sensível e curiosa, inteligente, leitora de biblioteca pública, aberta ao mundo e às suas verdades, Luísa tinha auto-estima, valorizava seu próprio ser, tornara-se autêntica, amadurecida, respeitosa e simples.
   – Professor Vicente, se não se importa, gostaria de saber um pouco mais sobre o que é ser vegetariano, poderia me dizer?
  – Com prazer. “O ato de comer carne, Luísa, está tão enraizado em nossos costumes que nunca nos perguntamos o que realmente significa se alimentar de outros animais. As embalagens dos supermercados nos mostram animais saudáveis e felizes em fotos, desenhos, ou vendem pedaços de animais em bandejas de isopor cobertas por plástico transparente. Tudo sem sangue, sem cara, cortado e esterilizado, pronto. Como quase todas as pessoas comem carne, acreditamos que isso seja correto e sem qualquer conseqüência. Não é bem assim. Há pouco mais de 100 anos as pessoas tinham escravos em suas casas e isso era considerado normal. Mas os costumes mudaram e a escravidão foi abolida”.
     – Você está me entendendo, Luísa?
     –  Sim, professor. Continue, por favor,
     – Pois bem, além da crueldade contra esses seres, o consumo de carne causa problemas ecológicos, de saúde e econômicos. Os animais reagem aos carinhos e às dores que lhes são impostos. Percebem o que está ao seu redor e buscam as coisas agradáveis, enquanto fogem das ruins e dolorosas. Qualquer um percebe isso. Mas o que não conseguimos aprender é que nós também infligimos sofrimentos aos animais sem qualquer necessidade, simplesmente por luxo, costume ou vaidade. Manter animais vivos apenas com o intuito de matá-los é uma grande crueldade. Especialmente quando porcos, frangos e bois são confinados em espaços minúsculos, onde permanecem espremidos uns contra os outros. E o mais curioso de tudo isso, Luísa, é que nós escolhemos os que vão morrer e aqueles que merecem viver. Gatos, cães e pássaros são mantidos vivos, por serem domesticáveis e “bonitos”. Os pássaros, capturados, permanecem em gaiolas: é de sua natureza voar. Todos os demais podem ser mortos porque não simpatizamos com eles. Amar alguns animais e aceitar que outros morram é incoerente.
     Dados divulgados pelos Estados Unidos demonstram que as pastagens para gado e as plantações de grãos utilizados para alimentar os animais são uma das principais causas de desmatamento do mundo. Mais de 25% das florestas da América Central, por exemplo, já foram devastadas para pastagens. No Brasil 16% da Amazônia vieram abaixo pelo mesmo motivo.
      Florestas como essas são vitais para a vida na Terra e manutenção do clima, além de serem uma reserva ainda não pesquisada de plantas que podem conter princípios ativos benéficos à humanidade, como os laboratórios americanos já perceberam faz tempo. Consumir animais, portanto, é antiecológico.
      Esse hábito também não é nada bom para a saúde dos seres humanos. Um estudo do Dr. Colin Campbell, da Universidade Cornell, nos EUA, analisou a relação entre a dieta e a saúde humana. Ele chegou à conclusão de que 80% a 90% de todos os tipos de câncer, doenças do coração e do sistema vascular podem ser prevenidos até uma idade bem avançada se a pessoa deixar de se alimentar com produtos animais. Diversas outras doenças estão ligadas ao consumo de carne, entre elas diabetes e artrite. Além disso, nas fazendas de criação são aplicadas aos animais doses excessivas de hormônios e antibióticos. Todos esses produtos químicos permanecem na carne dos bichos, que é ingerida por nós, e se acumulam em nossos corpos.
     840 milhões de pessoas no mundo, incluindo 200 milhões de crianças, passam fome. Curiosamente, 40% dos grãos colhidos são utilizados para alimentar os animais. Só os Estados Unidos consomem 1/3 desse total. Estima-se que, para cada quilo de carne obtido de um animal, são utilizados 40 litros de água. A vaca, por exemplo, consome 16 quilos de vegetação para um quilo convertido em carne. Em um mundo em que a água potável é cada vez mais escassa e há um racionamento iminente, esses gastos são um desperdício. Uma pesquisa do Escritório de Referência Populacional ─ Population Reference Bureau ─ concluiu que, se toda a humanidade adotasse uma dieta vegetariana, a produção atual de alimentos seria suficiente para 10 bilhões de pessoas, número superior às previsões populacionais para o ano de 2050.
     Parar com os abusos aos animais é um trabalho longo e difícil, exige o esforço de muitos pois mudaria uma realidade que encara a crueldade como algo comum. Mas cada um de nós, Luísa, pode ser uma dessas pessoas e fazer a diferença, parando de consumir animais: aves, porcos, caça, ou qualquer produto que envolva matança ou sofrimento. Existem deliciosas, saudáveis alternativas vegetais para todos os pratos que usam carnes, e elas são livres de crueldade e mais baratas. Não devemos também vestir pele, penas ou couro de animais. Existem fibras vegetais para todos os tipos de tecidos e produtos que podem ser utilizados na confecção de roupas, calçados e acessórios, igualmente bonitos. Não compre produtos testados em animais. Esses testes são desnecessários, cruéis, obsoletos e não servem de garantia para o homem.
     – Professor, estou sem fôlego: vou me assentar.
      – Você quer que eu continue, Luísa?
      – Por favor.
         Pois é isso, amiga, e agora vou entrar na parte mais dolorosa, cruel. O foie gras, fígado de ganso, é obtido a custa de muita crueldade praticadas contra os gansos e patos. São-lhes inseridos funis e tubos metálicos, para sua alimentação, garganta abaixo, medindo de 20 a 30 cm que vão até o estomago das aves; depois de 4 semanas, elas são abatidas. Na maior parte das vezes, seus fígados alcançam de 6 a 12 vezes o tamanho normal; tornam-se massas pálidas e inflamadas do tamanho de melões. Não são mais órgãos firmes, pequenos e sadios. Os animais assim ficam com dificuldades de andar e respirar. A ração é composta de milho cozido, incluindo gordura de porco ou de outros gansos com sal. Para aqueles que ainda duvidam: essas criaturas sentem medo e dor. Muitas dessas aves, quase 10% delas morrem com o estômago rompido, alimento no pulmão ou por doenças e infecções causadas pelos tubos sujos de alimentação.
       Quarenta e três veterinários de Nova Yorque declararam que a produção de fígado de ganso deveria ser banida porque o foie gras nada mais é do que uma lipidose hepática, uma doença do fígado: Animais nessa condição devem se sentir extremamente mal. A produção de foi gras, por definição, é uma evidente crueldade. O comércio de fígado de ganso já foi banido na Alemanha, Dinamarca, Noruega e Polônia; e o perito em gansos, Konrad Lorens, ganhador do Prêmio Nobel, se disse “vermelho de raiva” diante do relatório da indústria de foie gras, acrescentando: “é uma vergonha para a Europa”.
    As duas emocionadas ouvintes entreolharam-se, e o vegetariano professor, com voz clara, firme, consciente de que uma idéia passa a ser um valor quando comove, e compromete a ação, continuou: A carne de vitela é muito apreciada por sem tenra, clara e macia. O que pouca gente sabe, entretanto, ela é fruto de muito sofrimento do bezerro macho, que desde o primeiro dia de vida é trancado num compartimento, sem espaço para se movimentar. Assim, o animal não cria músculos e a carne se mantém macia. Alguns pensadores e homens notáveis pela inteligência eram vegetarianos. Albert Einstein disse: “Sou um fervoroso seguidor do regime vegetariano, sobretudo por razões morais e estéticas. Creio que a vida vegetariana, por seus efeitos físicos, influenciará no temperamento dos homens de maneira tal que melhorará em muito o destino da humanidade” E Leonardo da Vinci: “Tempo virá em que os seres humanos se contentarão com uma alimentação vegetariana e julgarão a matança de um animal inocente como o assassínio de um homem”. E Pitágoras: “A carne é o alimento de certos animais, não de todos, pois os cavalos, os bois e os elefantes se alimentam de ervas. Só os que têm índole bravia e feroz, os tigres e os leões etc. podem saciar-se de sangue. Que horror é engordar um corpo com outro corpo, viver da morte dos seres vivos”. E George Bernard Shaw: “Quando um homem mata um tigre, chamam a isso esporte; quando um tigre mata um homem, chamam a isso ferocidade”. E outros...
    Depois que Vera saiu, Luísa segurou as mãos do professor Vicente, olhou-os nos olhos e disse: “Não como carne a partir de hoje”.

 
Roberto Gonçalves
Escritor



 
RG
Enviado por RG em 20/08/2012
Reeditado em 09/07/2016
Código do texto: T3839615
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