Destino Cruel
Lotado na Delegacia de Polícia de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, ainda novo de polícia, conheceu o velho Comissário Nelson Branquini. O Comissário era conhecido pelo seu extremo nervosismo. Andava saturado da rotina estafante de seu trabalho, sentia que carregava o mundo nas suas costas, tantos os problemas que teimavam em cair em seu colo. Depois das 24 horas de trabalho, gostava de conversar um pouco com o colega Humberto, que o rendia no serviço. Para Humberto, novato, essas conversas sempre produziam algum ensinamento. Notava, claro, que o colega mais velho andava estafado, precisando de um descanso. Nos dias de maior nervosismo, após um plantão tumultuado, Nelson Branquini chamava o colega no canto e desabafava: olha, Humberto, você é ainda muito jovem, largue a polícia, faça outra coisa. Isso aqui não é pra você! Veja o meu caso, estou marcando passo, velho, e ficando neurótico. E sabe quem me põe mais neurótico? A parte que vem aqui reclamar. Já não estou conseguindo mais olhar para a cara da pessoa. Aquela cara, em tom de súplica, olhando para mim e reclamando, reclamando, reclamando! Isso me deixa louquinho. A vontade que tenho é de dar um tapa na cara da vítima e expulsá-la da minha frente, embora nunca tenha feito tal coisa, me contenho, claro! Já com relação ao infrator, não sinto absolutamente nada, pois esse nunca aparece aqui na Delegacia para reclamar . A vítima é que acaba comigo! Isso me mata! E tem mais, Humberto, a área aqui é servida por linha de trem. Reze para nunca ocorrer um choque de trens, como já ocorreu comigo. Foram cinco dias sem ir em casa, fazendo o registro da ocorrência, solicitando mil perícias, arrecadando pertences das vítimas, remoção de mais de cem cadáveres, uma cena dantesca. Cada novo plantão, Humberto era informado de alguma novidade acontecida com o Branquini. De uma das vezes, foi até muito divertido. Branquini deixou que seu auxiliar, um velho detetive de poucas luzes, efetuasse o registro de algumas ocorrências mais simples, durante a tarde, pois teve que ir ao seu psiquiatra particular. Ao voltar à noitinha, deparou-se com o seguinte registro, feito pelo detetive: Morte súbita no meio da rua: encontrado morto, às 16h., em frente ao Hospital de Santa Cruz, o nacional que ora sabe chamar-se Osvaldo da Silva. O cadáver foi encaminhado para o Instituto Médico Legal e seus pertences foram arrecadados e se encontram no cartório desta Delegacia. Não foi encontrado nenhum dinheiro. Importante esclarecer que horas antes o cadáver foi visto andando de bicicleta e chegou até a passar em frente a esta DP. Não é preciso dizer que o Branquini quase morreu de infarto com esta jóia de registro policial. Mas o mais incrível ocorreu seis meses depois. Eis o fato: às doze horas, pontualmente, chega o Humberto para render seu colega Branquini, que não se encontrava na Delegacia. Ninguém sabia o paradeiro dele. Somente por volta das 13,30h., surgiu o nosso Branquini, espavorido, e diz ao Humberto: colega, por volta das onze horas, portanto uma hora antes de terminar meu plantão, atropelei, com meu fusca, um menino, que corria atrás de uma pipa e ele morreu. Por favor, faça o registro da ocorrência, mas não dê colher de chá pra mim, não! Bota que eu estava correndo, que fui imprudente, carrega nas tintas! Na verdade, não foi nada disso, o menino apareceu repentinamente na pista, correndo atrás de uma pipa e não tive culpa. Mas se você escrever isso, o Promotor vai achar que você está me protegendo e aí a denúncia vem quente em cima de mim e fica mais difícil de me defender. Mas se você enfiar a mamona, o fiscal da lei vai desconfiar, estranhar, mesmo, e vai procurar descobrir a verdade real. O novato Humberto pensava: este Nelson é uma escola de polícia, apesar do nervosismo. Mesmo azarado, não tem ocorrência que derrube este cara.
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O tempo passa e o Comissário Humberto lê a notícia no jornal, manchete de primeira página, que em uma Delegacia de Polícia de Copacabana, em uma região próxima ao corte do Cantagalo, fronteira de Copacabana com a Lagoa Rodrigo de Freitas, apurava-se a entrada de um cavalo em apartamento situado no 6º andar de um prédio e o mistério estava sendo desvendado exatamente pelo Nelson Branquini, de plantão naquela noite. A notícia ainda dava conta que o Comissário Branquini declarava ao jornal, muito assustado e mais nervoso do que nunca, que depois de se desincumbir da ocorrência iria entrar em licença para tratamento de saúde e, possivelmente, em seguida, pediria sua aposentadoria, já que se sentia vítima, segundo suas palavras, de um destino muito cruel. Realmente, a ocorrência inusitada aconteceu de fato, mas de fácil explicação. O edifício onde se deu a invasão do cavalo, no sexto andar, ficava na frente de um morro quase todo de pedra, construído muito próximo a esse paredão, sem qualquer habitação, e o cavalo vadio conseguiu galgar o morro, por trás do prédio, com sua escalada facilitada pela existência de alguns platôs lá existentes, chegando exatamente em frente a um quarto de um apartamento, cuja janela larga se encontrava aberta, daí a relativa facilidade com que o animal adentrou no apartamento, para espanto geral de todos. Humberto, leitor assíduo da crônica diária da época, "A vida como ela é", do xará do Branquini, o Nelson Rodrigues, lembrou-se que o cronista dizia que ainda não haviam descoberto o bicho-homem. A propósito de uma entrevista, criticava uma psicanalista que botava a culpa dos problemas do mundo na sociedade, na educação, jamais na própria pessoa. E concluía o Nelson Rodrigues: Ainda não descobriram o homem, mas vão acabar descobrindo. Estou vendo a hora em que a psicanalista ainda vai dizer que quem nada é a piscina e não o nadador. E, pela primeira vez, o Humberto não concordou com o Nelson Rodrigues. Não tinha dúvida: no caso do Comissário Branquini era a piscina que estava nadando...
Nota: Este conto antigo foi muito apreciado pelos poucos recantistas que leram.
Esclareço, passado tanto tempo, que os personagens são reais e o conto é verdadeiro, apenas os nomes dos personagens foram trocados, para garantir o anonimato.
Meu próximo texto, que já está pronto, crônica falando de amor, será o de número 600 e espero que meus amigos e amigas leiam em grande número, para minha alegria.
Lotado na Delegacia de Polícia de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, ainda novo de polícia, conheceu o velho Comissário Nelson Branquini. O Comissário era conhecido pelo seu extremo nervosismo. Andava saturado da rotina estafante de seu trabalho, sentia que carregava o mundo nas suas costas, tantos os problemas que teimavam em cair em seu colo. Depois das 24 horas de trabalho, gostava de conversar um pouco com o colega Humberto, que o rendia no serviço. Para Humberto, novato, essas conversas sempre produziam algum ensinamento. Notava, claro, que o colega mais velho andava estafado, precisando de um descanso. Nos dias de maior nervosismo, após um plantão tumultuado, Nelson Branquini chamava o colega no canto e desabafava: olha, Humberto, você é ainda muito jovem, largue a polícia, faça outra coisa. Isso aqui não é pra você! Veja o meu caso, estou marcando passo, velho, e ficando neurótico. E sabe quem me põe mais neurótico? A parte que vem aqui reclamar. Já não estou conseguindo mais olhar para a cara da pessoa. Aquela cara, em tom de súplica, olhando para mim e reclamando, reclamando, reclamando! Isso me deixa louquinho. A vontade que tenho é de dar um tapa na cara da vítima e expulsá-la da minha frente, embora nunca tenha feito tal coisa, me contenho, claro! Já com relação ao infrator, não sinto absolutamente nada, pois esse nunca aparece aqui na Delegacia para reclamar . A vítima é que acaba comigo! Isso me mata! E tem mais, Humberto, a área aqui é servida por linha de trem. Reze para nunca ocorrer um choque de trens, como já ocorreu comigo. Foram cinco dias sem ir em casa, fazendo o registro da ocorrência, solicitando mil perícias, arrecadando pertences das vítimas, remoção de mais de cem cadáveres, uma cena dantesca. Cada novo plantão, Humberto era informado de alguma novidade acontecida com o Branquini. De uma das vezes, foi até muito divertido. Branquini deixou que seu auxiliar, um velho detetive de poucas luzes, efetuasse o registro de algumas ocorrências mais simples, durante a tarde, pois teve que ir ao seu psiquiatra particular. Ao voltar à noitinha, deparou-se com o seguinte registro, feito pelo detetive: Morte súbita no meio da rua: encontrado morto, às 16h., em frente ao Hospital de Santa Cruz, o nacional que ora sabe chamar-se Osvaldo da Silva. O cadáver foi encaminhado para o Instituto Médico Legal e seus pertences foram arrecadados e se encontram no cartório desta Delegacia. Não foi encontrado nenhum dinheiro. Importante esclarecer que horas antes o cadáver foi visto andando de bicicleta e chegou até a passar em frente a esta DP. Não é preciso dizer que o Branquini quase morreu de infarto com esta jóia de registro policial. Mas o mais incrível ocorreu seis meses depois. Eis o fato: às doze horas, pontualmente, chega o Humberto para render seu colega Branquini, que não se encontrava na Delegacia. Ninguém sabia o paradeiro dele. Somente por volta das 13,30h., surgiu o nosso Branquini, espavorido, e diz ao Humberto: colega, por volta das onze horas, portanto uma hora antes de terminar meu plantão, atropelei, com meu fusca, um menino, que corria atrás de uma pipa e ele morreu. Por favor, faça o registro da ocorrência, mas não dê colher de chá pra mim, não! Bota que eu estava correndo, que fui imprudente, carrega nas tintas! Na verdade, não foi nada disso, o menino apareceu repentinamente na pista, correndo atrás de uma pipa e não tive culpa. Mas se você escrever isso, o Promotor vai achar que você está me protegendo e aí a denúncia vem quente em cima de mim e fica mais difícil de me defender. Mas se você enfiar a mamona, o fiscal da lei vai desconfiar, estranhar, mesmo, e vai procurar descobrir a verdade real. O novato Humberto pensava: este Nelson é uma escola de polícia, apesar do nervosismo. Mesmo azarado, não tem ocorrência que derrube este cara.
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O tempo passa e o Comissário Humberto lê a notícia no jornal, manchete de primeira página, que em uma Delegacia de Polícia de Copacabana, em uma região próxima ao corte do Cantagalo, fronteira de Copacabana com a Lagoa Rodrigo de Freitas, apurava-se a entrada de um cavalo em apartamento situado no 6º andar de um prédio e o mistério estava sendo desvendado exatamente pelo Nelson Branquini, de plantão naquela noite. A notícia ainda dava conta que o Comissário Branquini declarava ao jornal, muito assustado e mais nervoso do que nunca, que depois de se desincumbir da ocorrência iria entrar em licença para tratamento de saúde e, possivelmente, em seguida, pediria sua aposentadoria, já que se sentia vítima, segundo suas palavras, de um destino muito cruel. Realmente, a ocorrência inusitada aconteceu de fato, mas de fácil explicação. O edifício onde se deu a invasão do cavalo, no sexto andar, ficava na frente de um morro quase todo de pedra, construído muito próximo a esse paredão, sem qualquer habitação, e o cavalo vadio conseguiu galgar o morro, por trás do prédio, com sua escalada facilitada pela existência de alguns platôs lá existentes, chegando exatamente em frente a um quarto de um apartamento, cuja janela larga se encontrava aberta, daí a relativa facilidade com que o animal adentrou no apartamento, para espanto geral de todos. Humberto, leitor assíduo da crônica diária da época, "A vida como ela é", do xará do Branquini, o Nelson Rodrigues, lembrou-se que o cronista dizia que ainda não haviam descoberto o bicho-homem. A propósito de uma entrevista, criticava uma psicanalista que botava a culpa dos problemas do mundo na sociedade, na educação, jamais na própria pessoa. E concluía o Nelson Rodrigues: Ainda não descobriram o homem, mas vão acabar descobrindo. Estou vendo a hora em que a psicanalista ainda vai dizer que quem nada é a piscina e não o nadador. E, pela primeira vez, o Humberto não concordou com o Nelson Rodrigues. Não tinha dúvida: no caso do Comissário Branquini era a piscina que estava nadando...
Nota: Este conto antigo foi muito apreciado pelos poucos recantistas que leram.
Esclareço, passado tanto tempo, que os personagens são reais e o conto é verdadeiro, apenas os nomes dos personagens foram trocados, para garantir o anonimato.
Meu próximo texto, que já está pronto, crônica falando de amor, será o de número 600 e espero que meus amigos e amigas leiam em grande número, para minha alegria.