Sem outras intenções

Estava inquieta.

Precisava tomar uma decisão e embora já tivesse analisado e pesado as consequências de cada uma das possibilidades, ainda não sabia o que fazer.

Sentiu necessidade de conversar.

Pensou imediatamente em Tom. Dentre as pessoas legais que conhecia, ele era, sem dúvida, a mais legal. Era seu melhor amigo.

Pegou o telefone e discou.

- Alô – disse uma voz arrastada e sonolenta.

- Tom, preciso de você.

- Bom dia para você também. Sim, também estava com saudades.

Diante de seu silêncio confuso, ele riu e disse:

- Vem pra cá. Estou sozinho.

- Está bem.

Enquanto se arrumava, pensou nele.

Tom a conheceu em seu estado bruto, na época em que um pesado código de regras e condutas exigidos para se viver em sociedade ainda não a haviam tocado e moldado de forma definitiva. Uma época em que transitava precariamente entre o mundo que considerava seguro e o mundo que esperavam que fizesse parte.

Tinha apenas oito anos. Era exaustivo!

Seu silêncio e recusa em relacionar-se com outras pessoas eram vistos, pela maioria, como uma ofensa imperdoável. Tom enxergou suas dificuldades e engoliu aquela distância, não permitindo que o fato de estar condicionada a ser diferente a jogasse no abismo do isolamento. Ensinou que poderia se relacionar de forma inteira e confiante com alguns e de forma satisfatória com outros.

Na rua o sol daquela manhã de sábado a atingiu em cheio, ao mesmo tempo em que uma onda de gratidão e carinho a inundou. Colocou os óculos escuros e continuou andando. Ele a amava e nunca se furtou a demonstrar isso. Fazia naturalmente o que a maioria sequer tentou, simplesmente a compreendia.

Nunca se aborrecia ou a tratava mal. Estava sempre interessado no que tinha a falar e escutava, fascinado, suas teorias sobre os mais diversos assuntos. Também não se importava com suas pausas prolongadas durante as conversas ou mesmo tentava arrancá-la à força de seus pensamentos. Jamais tentou extrair o que ela não podia dar.

No caminho passou na padaria e comprou tudo o que ele mais gostava e ao ver-se diante do prédio, tocou o interfone e aguardou.

Quando chegou ao andar, Tom já esperava de banho tomado e cheiroso, mas a cara ainda estava amassada de tanto dormir.

Aproximou-se timidamente para dar-lhe um beijo, mas ele foi logo dizendo:

_ Ah vem cá! – E deu-lhe um abraço apertado, amassando o pão que estava nos seus braços e puxando-a para dentro do apartamento.

Era dado aqueles arroubos de afetividade, o que a deixava um pouco constrangida, mas totalmente acolhida.

Ele ligou o som e imediatamente uma voz grave e pesada preencheu o ambiente.

- Credo! A essas horas da manhã, isso é deprimente!

Ele mudou para outra estação que estava tocando: Kuduro!

Olharam um para o outro e caíram na risada.

- Acho que concordamos que aí também já é demais né? – Perguntou ainda rindo.

Como não encontrou nada de interessante, desligou o aparelho e seguiram direto para a cozinha.

Ele indicou a cadeira para que se sentasse e se pôs a preparar o café ao mesmo tempo em que arrumava a mesa.

Ficou observando-o trabalhar e deixou que sua memória fosse até aquele longínquo início de uma noite quente e abafada. Estavam com quinze anos e tinham acabado de chegar da escola, cansados se jogaram na calçada da casa dela, dando um tempo para se recuperarem e observando o movimento.

Tinha algo errado e logo descobriu o que a estava incomodando. Inacreditavelmente, Tom estava em silêncio. Virou a cabeça para perguntar o que estava havendo, quando algo que não conseguiu identificar na expressão dele a deteve. Esperou.

Ele a olhou séria e longamente e disse:

- Sou gay.

- Gay? Como assim?

- Gay, bicha, homossexual ou o que você quiser chamar. Gosto de homem.

Não negava: Foi um susto! Ficou olhando muda de espanto.

- Ei – Disse ele colocando o dedo na ponta do seu nariz e apertando- Já te disse que não é educado ficar olhando as pessoas desse jeito.

Sem saber que palavras usar, chegou mais perto dele e apertou o seu braço.

- Não tem problema, você ainda é o Tom. Nada muda.

- Aí é que você se engana – suspirou e pôs-se a discorrer sobre seus medos, dúvidas, angústias, paixões e as mudanças que viriam a partir dali.

Escutou tudo sabendo que no fundo tinha razão. E como tinha!

Acompanhou todas as dificuldades e viu a vivacidade flamejante de Tom aquietar-se, enquanto era sugado para um mutismo perturbador. As brigas com os pais, o preconceito dos amigos, as troças e fofocas dos conhecidos e inimigos. E o viu atravessar tudo carregando resignado o peso de sua escolha, com a expressão neutra e vazia. Sentiu medo por ele. Temeu perdê-lo.

Após o que parecia uma eternidade, Tom finalmente voltou a sorrir. Foi como se a luz voltasse a brilhar depois de uma noite tormentosa e escura.

Foi aí que aprendeu uma das maiores lições de sua vida. Sempre valeria a pena pagar o preço pela liberdade de ser quem realmente se é. Jamais falavam sobre esse período, não precisavam. Ela estava lá.

Foi chamada à realidade quando uma xícara de café pousou à sua frente. Uma sensação de paz a invadiu e soube que tinha encontrado a solução para o problema que a perturbava. Tomou sua decisão.

Encostou-se confortavelmente na cadeira e desviou sua atenção, daquele assunto, para dedicar-se exclusivamente à Tom que, no seu bom humor habitual, começou a contar-lhe as novidades que rolaram naqueles dez dias que não se viam.

Deixou que seu riso se misturasse ao dele num entendimento e cumplicidade que só os que se amavam sem outras intenções conseguiam alcançar.