O Perseguido

Meu nome é Issan, tenho 29 anos, trabalho numa agência bancária, e moro em um pequeno quarto numa avenida movimentada. O barulho me ajuda a não prestar muita atenção em mim mesmo.

Tenho que pagar o aluguel amanhã, mas vou pagá-lo hoje, por que não gostei nada da cara que o proprietário fez para mim outro dia. Será que ele acha que não paguei o mês passado? Ou ele não está gostando da minha presença aqui? Tenho medo que ele queria que eu me retire, pois eu me sinto seguro nesse lugar e quero permanecer aqui. A zeladora e eu não nos simpatizamos, será então que ela anda falando mal de mim para o dono do imóvel? Há tantas peças nesse prédio, tanta gente estranha morando nesse condomínio, então, qual a razão para não gostarem de mim ou não me quererem mais por aqui? Sou honesto, não crio problemas, nem converso muito com ninguém. Mesmo assim, melhor não arriscar, vou agir da maneira mais agradável que puder. Quem sabe se eu chegar ao dono do prédio e explicar que, caso haja algum problema entre algum vizinho e eu, ou entre eu e a zeladora, eu me desculpo com todos.

Tudo isso passava numa fração de segundos na mente de Issan.

Ao deitar-se sempre se debatia agoniado na cama, agitava-o o medo de perder a hora na manhã seguinte e atrasar-se, temia parecer mal humorado no atendimento, receava que seu patrão o achasse pouco interessado no trabalho. Temia, enfim, o que poderiam pensar dele. Há anos afastara-se da família. Acreditava na legitimidade de seu gesto de vingança, por que desconfiava do amor dos parentes, sentia que eram hipócritas, ou interesseiros. Não tinha o dom da franqueza. Seus sentimentos em relação a quase tudo estavam sempre velados. Não dava chances de muita aproximação, logo, como poderiam os outros entender seu estado de espírito?

Toda sua espontaneidade nos gestos, no sorriso, nos sentimentos, nas decisões, nas relações, na fé, se convertia em temores sombrios, desconfianças terríveis.

Issan já havia muito tempo cristalizado uma rotina que englobava tudo o que fazia e o sentido de sua própria vida. Tentava sistematizar o seu dia-a-dia em costumes precisos, essenciais e até absolutos, do tipo: ”posso viver o resto de minha vida dessa maneira".

Muitas vezes, comendo ou bebendo algo, olhando pela janela o movimento de pessoas na rua, homens apressados, pessoas bem ou mal vestidas, casais, mães junto dos filhos, carteiros, jovens extravagantes, guardas, velhinhos, não se furtava a conversar consigo, em pensamento, mas mexendo os lábios: " que gente mais iludida essa, para que levar essa vida assim? Qual o sentido dessa mãe carregando tantos filhos, quase não dá conta deles... Esse guarda, na porta do banco, acredita poder proteger os clientes, o dinheiro dos caixas? Coitado!"

Seu sentimento era o de que a sua vida estava mais preenchida de sentido do que as outras, e que as pessoas nem se davam conta da importância que ele tinha. Issan nutria um forte sentimento de que as pessoas viviam sempre iludidas ou frustradas, e ele seria como que um remédio para isso tudo. Buscar a segurança em primeiro lugar e arriscar depois.

Sentia-se tão inseguro e perseguido que, por vezes, escondia-se até dentro de casa, sozinho. Ocultava-se de si mesmo num canto de seu quarto, que era próximo de um grande espelho pelo qual passava em frente todo dia. Dar de frente com sua própria imagem refletia o incomodava. O modo como se olhava, a pose que fazia, sua vaidade, seu orgulho, seu medo, sua raiva, sua teimosia, tudo estampado naquela figura desajeitada. Em seu canto de refúgio, porém, imaginava uma aparência bem diferente de si, e assim podia sentir-se tranqüilo.

Era quase hora de sair para trabalhar. Issan lembrou-se de que tinha de pagar o aluguel adiantado e ainda conversar com o proprietário, para se sentir mais aliviado, só que não havia tempo. Saiu e pegou o ônibus.

Durante o expediente uma coisa martelava sua atenção sem que ele quisesse: o adiantamento do aluguel junto de explicações. Era raro sentir-se seguro, e essa preocupação estava diante dele o tempo todo. Achou, portanto, que poderia trabalhar de modo impróprio, e talvez até ganhar advertência por cometer algum erro, pois, estar muito absorvido nessa pendência alheia ao serviço era uma situação que certamente despertaria suspeitas. Um pecado abominável. Isso logo virou um verdadeiro fogo cruzado em sua mente.

Olhava para os colegas, para clientes, para as pessoas, todos pareciam considerá-lo culpado de algo. Tentava se concentrar, tentava não pensar, apenas contar notas, falar formalmente no atendimento, agir de maneira lógica, mas ficava cada vez mais agitado. Mudava de posição na cadeira, irritado. Se um lápis escapava-lhe da mão e tombava sobre a mesa, parecia fazer um barulho terrível. Ao fazer uma bolinha de papel com um recibo tentou acertá-la em um balde de lixo que estava um pouco distante de sua mesa. Errou, e isso o deixou com um ódio profundo, só que havia uma lixeirinha embaixo de sua mesa.

Naquele dia Issan desejou que o banco estivesse pouco movimentado, coisa que normalmente temia desejar, pois, para ele, poucos clientes poderiam significar corte de despesas.

Cada pessoa que passava pela porta rotatória o impacientava. Parecia a ele que todos tinham resolvido freqüentar o banco, naquele mesmo dia, somente para incomodá-lo, para ocupá-lo mais com serviços e, por conseguinte, deixá-lo mais angustiado com sua preocupação particular insolúvel. Olhava para o relógio, que lhe dava mal estar. Chegou a hora de almoçar. Normalmente almoçava só. Não conseguiu comer direito nesse dia. Não se dava conta da falta de fundamento de sua preocupação. Voltou do intervalo mais angustiado e irritado. Cheio de serviço e gente para atender seu único pensamento era: ”justamente hoje aparecem esses idiotas para atender, e esse chefe estúpido, sem noção, empilha uma porção documentos para verificar, sendo que há tanta gente pra atender... não posso nem estar em paz por um momento. Não posso respirar ninguém me ajuda ninguém me entende".

Issan permanecia inseguro.

Por breves momentos toda sua preocupação, que pesava toneladas sobre seu espírito, desaparecia completamente, fugia sem deixar rastro, e uma sensação extremamente prazerosa invadia todo seu corpo, ficava eufórico por dentro, simpatizava com todos os clientes e carregava as pilhas de documentos como se sustentasse bolhas de sabão sobre a palma da mão. Mas, aos poucos esse paraíso ia-se perdendo, como o ar que vai ficando rarefeito à medida que subimos, e então se sentia mais sufocado que antes, perdia o ânimo e as forças.

Quando o dia de expediente findou, sentia que tudo fora inútil, sua preocupação, sua tentativa de aliviá-la, o tempo gasto com tentar acalmar-se, o almoço desperdiçado... Achava que aquele sistema em que vivia o constrangia demais.

Já se considerava um desesperançado, sentia-se tonto quando chegou ao corredor de seu andar. A zeladora, como quem dizia não se dar bem, estava lá com um esfregão e um balde, o viu e veio até ele:

“O Sr. está bem Sr. Issan? Eu tenho medo de perguntar; quase nunca o cumprimento por receio de que o Sr. não esteja de bom humor, não queira ser incomodado... o Sr. parece tão sério, e ocupado..."

Issan ficou espantado com a atitude da velha zeladora, tão humilde, tão respeitosa. Abriu os lábios mais ou menos trêmulos, e disse: ”A Sra. me desculpe... m-mas sabe se o Sr. Isaú está aqui hoje?

"Não Sr. Issan, ele viajou, e pediu-me para avisar aos inquilinos que só volta daqui há suas semanas."

"Muito obrigado"

Issan retirou-se para seu quarto, sombrio, seguido pelo olhar atônito da pobre faxineira.

Fechou-se a chave, ligou apenas a luz da pequena sala, e deitou-se em seu quarto, no escuro. Estava claro que o dono do prédio não estava muito preocupado com "quando" receberia o próximo dinheiro do aluguel. Mas Issan não conseguia nem pensar numa solução absurda para seu problema absurdo. Apenas continuava agoniado na cama, tal como estivera desde ao levantar-se. Tinha sofrido muito durante o dia. Não pensava em desconfiar de ninguém mais, estava muito esgotado, e, mesmo sua intensa preocupação, que ainda estava bem viva, começava a não fazer mais efeito algum sobre ele. Seus olhos foram se fechando aos poucos e uma quietude , um branco, um esvaziamento saudáveis foram tomando conta de seu corpo, seus sentimentos e pensamentos. Um alívio extremo começou a invadir seu ser. Naquele momento nenhuma preocupação, tabu, exigência poderia tirá-lo de seu descanso. Mas seus problemas ainda não estavam solucionados, e sim suspensos, sempre perigando desabar sobre sua cabeça, como um barraco de favela despenca embaixo de fortes chuvas. Naquele momento suas preocupações pareciam encarnadas no relógio de ponteiros fixado na parede. Durante o silêncio naquele recinto somente a fricção do ponteiro se movendo media o destino de seus tormentos.

Dimicop