As sombras de Hiroxima... – versão longa
Crónicas de um tempo que espero que nunca chegue…
Estamos só os dois perante um adversário que não se vê, mas que não pode ser muito mais numeroso do que nós, e que é o último adversário na ultima guerra que a humanidade terá de enfrentar…
“Ultima Guerra” porque nós e eles somos os últimos humanos que existem, e por isso depois de eliminado qualquer um dos lados a guerra terá um fim…
Não pode ser muito mais numeroso do que nós porque o sei bem, porque desde que Aquilo Aconteceu que vagueamos pelo mundo, e pudemos assistir ao decrescer dos números dos humanos com o passar do tempo, quer por via da fome, da doença, quer, sobretudo, pela mão de si próprio…
É a primeira vez em muito tempo que notamos a presença de humanos, e sendo esta área uma das últimas que possibilita a sua existência, a presença de apenas dois grupos é um sinal bem evidente que por sinal serão os últimos…
Por entre o silêncio e a neblina cinzenta avermelhada que cobre este enorme vale esperamos por qualquer movimento, qualquer som que nos indique tanto as intenções como o número do inimigo, embora as primeiras sejam mais do que previsíveis…
O ambiente é de uma tensão extrema, e se calhar por isso começo a divagar, a filosofar enquanto os meus olhos estão pregados na linha do horizonte por onde eles virão…
Ainda olho para Ti procurando um sinal do mesmo raciocínio, tornado tão raro como a própria humanidade, mas os teus olhos estão friamente pregados à tal linha do horizonte, enquanto as tuas mãos acariciam a arma que vai permitir que o único pensamento predominante seja exercido…: a nossa prevalência sobre os outros…
Por isso não reparas que de repente voltei ao tempo antes disto tudo acontecer e começo a exercer o pecado de reflectir, de pensar…
- Se somos os últimos humanos porque diabo nos matamos em vez de aliarmos esforços e de assim melhor garantir a nossa sobrevivência, porque nos deixamos levar pelo lado homicida quando o nosso instinto natural nos levaria a unirmo-nos para sobreviver em conjunto…? -
É uma bela questão sem dúvida, tem toda a pertinência, tem toda a lógica, que deixou de fazer sentido quando se começaram a fazerem sentir os efeitos colaterais inesperados das bombas…
No meu primeiro momento de lucidez, depois das bombas começarem a rebentar, começo a reflectir calmamente, recuando por isso mentalmente alguns anos, mesmo antes do desastre que nos levou até aqui, que nos levou ao último dia de alguns dos últimos humanos…:
Quando a politica de industrialização e produção em massa que passou a monopolizar toda a forma de estar humana, que passou a subordinar tudo o resto a esses interesses, interesses não individuais mas das grandes corporações, cuja produção em grande escala passou a ser a sua segunda obsessão de maneira a maximizar a primeira, a obtenção a todo e qualquer custo de lucros, essa demência de se produzir sem olhar a meios começou a revelar de forma inevitável os seus efeitos, e correndo toda a natureza um sério risco de sobrevivência, foram por fim tomadas medidas que limitavam a poluição, e a sustentabilidade quer dos solos, quer das cidades, quer da própria natureza, esperando que a capacidade regeneradora da natureza fizesse o resto e o planeta pudesse voltar a níveis de tóxicos anteriores, que permitissem a sobrevivência, sem contudo obstar à continuação da produção industrial.
Tal foi parcialmente conseguido, mas não totalmente…: com essas novas politicas ganhámos alguns séculos, mas a atmosfera estava de tal ordem contaminada que alguns tóxicos nunca seriam de todo eliminados, e, pior, a atmosfera possuía um manto invisível que impedia que alguns elementos nocivos se dissipassem, criando assim uma espécie de “escudo invertido” que faria com que novos gases se concentrassem sobre o planeta…Como a proibição foi efectiva, os níveis mantiveram-se, não aumentaram, mas num equilíbrio demasiado precário, e assim todos pudemos sobreviver, mas bastava apenas um pequeno descuido para o desastre se abater sobre a espécie humana…
E o desastre aconteceu, numa consequência indirecta da apetência da humanidade em teimar em não aprender as lições do seu passado, e por isso de forma recorrente cair nos erros desse passado…
Vivíamos tempos modernos, de progresso, de tal ordem que os tempos passados foram considerados demasiado imperfeitos para serem levados em conta, a fixação no presente, em tudo o que tínhamos alcançado cegou-nos de tal maneira que ignoramos um dos axiomas mais importantes da história humana, que o passado, por muito imperfeito que o seja, encerra valiosas lições, que se forem levadas em conta nos permitiriam evitar os erros desse passado…E assim esquecemos todo o passado, a História passou a ser uma disciplina de meros interessados especificamente em tal, e até das escolas ela desapareceu, ficando no seu lugar o estudo do presente…
E foi quando passámos a ignorar as lições de Hiroxima e Nagasaki, quando deixámos de recordar o dia em que estas cidades foram bombardeadas atomicamente, esquecemo-nos das suas horríveis consequências, esquecemo-nos que a humanidade jurou a si própria, e a bem de si própria, não voltar a repetir aqueles holocaustos…
Demos assim um passo gigante rumo à destruição quando ignorámos o tabu nuclear, e as armas passaram a serem mantidas para usar numa crise e não apenas para dissuadir o adversário de as usar, uma estratégia de “equilíbrio de terror” que tinha resultado durante décadas, porque todos tinham na memória as indescritíveis imagens de horror das cidades japonesas bombardeadas e dos seus nefastos efeitos nos humanos, mesmo na descendência daqueles que tinham sido bombardeados…Ignorámos que as células guardam os seus efeitos, e que depois das bombas rebentarem é que começaria o verdadeiro calvário dos sobreviventes…
O desastre total estava pois latente, e assim bastou uma crise banal, que noutros tempos seria resolvida com alguma diplomacia ou, no máximo, com algumas armas convencionais, e nunca mais do que isso…
Quando banalizámos o nuclear as bombas rebentaram por todo o planeta, pois mesmo as nações menores se acharam no direito de as usar para resolver as suas velhas questões com os vizinhos de ódios ancestrais…
Nos meses seguintes aos bombardeamentos, e estando a civilização humana reduzida aos previsíveis escombros, quanto tentámos reconstruir essa civilização é que nos apercebemos do que tínhamos causado, com o auxilio dos raros cientistas que tinham sobrevivido ao desastre…
Sei de tal porque quando vagueava pela paisagem calcinada encontrei um desses raros sobreviventes, que, com meia dúzia de papéis nas mãos me explicou o que se tinha passado, papéis onde tinha feito os seus cálculos, possibilitados pelas raras máquinas que tinham escapado ao holocausto, e pouco depois se tinham calado para sempre pela falência das suas baterias, calando assim em definitivo a ciência humana. E ele explicou-me que, depois dos bombardeamentos nenhuma mulher conseguira engravidar, e a capacidade humana de interagir em grandes grupos tinha desaparecido, de tal ordem que no máximo os grupos humanos tinham 10 pessoas, que se confrontavam até à morte com outros grupos, mesmo que fossem pessoas com que lidáramos toda a nossa vida, mesmo que se tratasse de família…
Intrigados por esta serie de perturbadoras disfunções, que impediam de facto qualquer reconstrução, os homens da ciência analisaram tudo o que podiam, e chegaram á conclusão que a atmosfera do planeta possuía uma espécie de “capacete” que impedia os efeitos da radioactividade se dissiparem, e condenava por isso a humanidade a ser estéril e a impedia de alguns processos cognitivos ou mesmo instintivos básicos, como por exemplo, a de se viver em grupo de forma a possibilitar a sobrevivência individual, o que de certa forma era uma irracionalidade que nos condenava de facto a todos…O pior de tudo é que a agressividade tinha aumentado exponencialmente, e não tendo forma de a controlar, cada ser humano se tornou um assassino, não potencial, mas de facto…
E foi assim que por todo o planeta a humanidade estéril se matou entre si até quase à extinção, porque cada humano abatido era insubstituível…
O cientista contou-me tal desesperado, esperando que eu o ouvisse, transmitiu-me esse conhecimento para ele não se perder, mas, apesar de o ouvir, fiz tal apenas de forma a estudar o que podia extrair dele, em que ele me poderia ser útil, compreendendo o que ele dizia, apercebendo-me da gravidade do que tinha acontecido, mas sendo incapaz de racionalizar tal, pois o pensamento que me dominava era a minha subsistência e o facto de ter à minha frente alguém que não deveria estar ali, pois só eu e tu importava-mos e tudo o resto deveria desaparecer…
Assim, quando ele acabou de falar eu fiz o que sentia que deveria ser feito, ficando com os seus preciosos apontamentos, agora cheios de sangue, que de facto me foram úteis numa noite mais fria em que nada tinha para nos aquecer…
Porque eu sei e sinto que os homens e mulheres que estão algures à minha frente são meus semelhantes, sei que são os últimos, sei que juntos poderíamos começar tudo de novo, mas acima de todos estes raciocínios está uma necessidade premente, quase fisiológica, de os querer matar, de querer eliminar ferozmente a concorrência, porque só nós é que poderemos prevalecer, não interessando mais nada…
O fim da Razão, a prevalência da destruição acima de todas as coisas, inclusive da nossa própria sobrevivência…
É este o nosso legado, é este o preço por termos esquecido as lições de Hiroxima…
Sei que quando ficarmos por fim os dois, quando tivermos a absoluta certeza de tal, também acharemos o outro um inimigo, e apesar de te amar e de tu me amares, o ódio é que nos comanda, a premência pela destruição pura e dura submete o nosso lado humano, e por isso ou irei morrer pela tua mão ou tu nas minhas…
Do nevoeiro saem por fim alguns vultos de forma humana, mas que não são nada, são apenas meros vultos, meras sombras impessoais que devo dissipar pois só a minha sombra devera prevalecer sobre todas as outras…
Por instantes um raio de sol amarelo rompe o nevoeiro e deixo-me perder na sua beleza, deixo-me seduzir por ela, e dou comigo a sorrir, mas o veneno que me alterou a estrutura celular e mental faz com que tudo seja demasiado breve, e em segundos esse prazer inocente se torna num enorme desprazer, e só o pensamento de ir acabar com as sombras que se aproximam me motivam, me move, me realiza, porque deixei de ser humano no dia em que as bombas rebentaram, porque começámos a deixar de ser humanos quando olhámos para o passado como uma aberração e não como uma fonte de saber, que se fosse devidamente assimilado nos teria garantido o futuro…
"Se queres prever o futuro, estuda o passado."
(Confúcio)
Nota:
Os efeitos da radioactividade sobre o homem e sobre a natureza são de tal ordem nocivos, que diversos relatórios e estudos feitos por cientistas desde 1945 (o ano da primeira deflagração atómica sobre humanos) ainda hoje são considerados “Classificados” e por isso nunca serão do conhecimento público, pois além de se temer uma revolta da opinião pública contra quem lançou as bombas sobre as cidades, receia-se também que essa mesma opinião pública queira ver banida a tecnologia nuclear, seja ela civil ou militar…