Notas Perfunctórias para um futuro recente.

E estava lá, recostado em sua poltrona, apertado atrás de óculos manchados e com o rosto desfigurado. Não sabia a quanto contemplava o céu alaranjado de sua janela ampla, quando se deu conta do breu que o substituía, traído vez ou outra por melancólicos pontos cintilantes.

Já era hora; Levantou-se e com passos lentos vagou pelo domínio de suas posses, que não ultrapassava quatro vãos e alguns volumes, que se amontoavam pelas frestas de móveis bem menos dignos. Tateando fez surgir à luz, e enquanto saciava a sede do corpo, sentia que a alma padecia de algo pior, mais trágico, um temor de si que não podia curar, pois além dele mesmo estava a solução, de forma que nem seus filosofemas de vida de alguns centavos, o tiravam de seu torpor.

Sentia que precisava sair, mas não reunia coragem para tanto, e um momento de fúria decidiu por ele que não faria nada, continuando preso em seu feudo, que lhe trouxesse alguma paz de espírito. Tomando então seu chapéu _panamá, sem adereços, seco e reto como o dono sonhara ser_ seguiu porta afora e não a trancou, fato que atrasou e quase cancelou a partida, pois a fúria havia se ido como chegou, mas o tédio e o orgulho não o deixavam ficar, então partiu.

Além de seus muros não havia mais nada, sua segurança terminara nos dois metros de concreto anteriores e o mundo o recebeu com seu sincero abraço e o estorvo de um mendigo que não tardara em contar-lhe a vida, muito mais desgraçada, muito menos poética, porém, muito mais feliz, e logo não pode conter um legítimo sentimento de inveja endereçado àquele ser invisível, que se engalfinhava entre uma multidão de transeuntes na esperança de viver um dia a mais pela compaixão do homem.

Sentimento dos mais singelos a inveja, mas também dos mais lúcidos, faz o homem que sempre pensa o outro para adornar a si, olhar no espelho cruel de sua alma e ver que, antes que pudesse crer, mentiria mil vezes para não pensar que é simplesmente o que decidiu ser, mas que antes deveria ser como o outro, aquele que o seu espelho inverso da consciência construiu, o outro que precisa ser destruído sem um único olhar, para que sua própria alma não venha visitar-lhe.

Momento sombrio para se viver à porta de casa, mas não creio que ele dispunha de tempo suficiente para pensar, respirar e andar enquanto segurava sua pasta pesadíssima com quase duas horas de anotações monótonas sobre a vida, a morte, as memórias e as tristezas de alguém que viveu e morreu sem nome, fama, pátria, alegrias ou tristezas muito diferentes umas da outras. Se apressou para chegar à tipografia que lhe esperava de porta entreaberta, em um corredor estreito, de uma das piores ruas, onde sonhos eram abandonados nas sarjetas e os sonhadores tinham destinos piores.

__ Assinale o folhetim do mais barato, com epígrafe desconhecida e diagrame as seguintes notas destinadas à posteridade, que já tem muito com que se preocupar.

E o aspirante a colunista sentado atrás do balcão, começou a montar em seu equipamento rústico as emaranhadas notas de autor desconhecido, que não podiam ultrapassar certas tantas linhas, já que a edição do folheto estava cheia de anunciantes importantes como funerárias e empresas de seguros que vendiam almas novas no caso de futuras condenações escatológicas.

__ Quando estiver pronto senhor.

Disse-lhe com voz tranquila, e antes que iniciassem, limpou bem os óculos não menos sujos que os do cliente, porém impregnado de uma matéria menos honrosa, era tinta usada em propagandas falaciosas de certas curas para o ascetismo baseadas em preceitos simples orientados por jejuns e exercícios. E foram.

__ Quanto à primeira nota que se chame, sobre a vida.

__ Certamente.

Pigarreando o narrador mudou de frontes, se alinhou, e ereto como nunca dantes, iniciou o seu discurso, recobrando uma jovial disposição já ha muito esquecida, parece que chegara a sorrir de sua empreitada, mas, como o fizera internamente, seu assistente não pode acompanhar-lhe.

__ A vida é uma merda! Começa sem motivo, sem motivo há de terminar. Viemos a esse mundo sem pedir e nele ficamos à deriva por alguns anos acorrentados e travestidos e quando nos damos por gente, não lembramos da parte mais gloriosa de nossa existência. Inventamos então metáforas limitadíssimas para nomear as coisas e vivemos esperando que um indivíduo qualquer nos aperte as faces e nos diga como fazem aos cães: bom garoto.

...

__ Gravado.

__ Continuamos a crescer sem dar nenhum palpite e nossas botas são amarradas e nossos espartilhos são acochados, até não podermos mais. Choramos, mas sem efeito, sorrimos, mas sem razão. Trazem-nos outros indivíduos, com eles devemos viver. Para eles devemos ser simples, retos, certos, amáveis e odiosos, a ponto que convivamos incontáveis anos até que o estranhamento torne-se amor, que o amor torne-se amizade, que a amizade se torne inimizade, e que tudo acabe em tédio.

...

__ Gravado.

__ E precisamos também mentir. Essa primeira metáfora que é gravada com sangue e lágrimas, que nos é negada desde sempre e quando se convém, torna-se a vela balão para passearmos entre os tempestuosos mares do pretume humano que temos de enfrentar cotidianamente.

__ Anote bem meu caro, a vida é uma merda, mas precisamos vivê-la, estamos aqui. Mas anote também, quem sou eu para afirmar tal coisa? Quem teria tamanha audácia de desdizer o que lhe foi dito senão um alguém à beira da morte, ou da loucura, ou da sanidade ou do cinismo sério que brota como erva daninha do jardim de jasmins que florescem ao redor de todos e que a todos cerca? Pois anote também que sou um tolo que, agora que encontrou uma fagulha de coerência, tropeça em seus próprios passos e se impõe a tarefa de elucidar para si o que acabou de se impor enquanto crença.

...

__ Gravado [...] mas meu caro narrador, suas palavras se encerram em breve, como queres arrematar sermão tão enfadonho?

Pela primeira vez foi honesto em sua vida o tipógrafo e riam-se, sem saber, deslealmente e fugindo dos bons costumes, como se quisesse por em prática o enfadonho discurso de seu empolgado narrador.

__ Encerre com a morte, nomeando a segunda nota, assim poderá ser.

__ Que seja.

__ A morte é uma merda, temos que dizer. Não sabemos por qual razão, não temos aviso prévio. Como num jogo de dados viciados acordamos com um duplo seis encravado na alma que se desfaz na lembrança, e o mais sábio homem torna-se pó e é levado ao esquecimento, e anote que o pior esquecimento é destinado aos que não foram lembrados apesar de citados aos gritos por uns e por outras.

...

__ Gravado.

__ Sabendo então que a vida é uma merda, que a morte e sua sublimidade não se afastam disto, resta pensar, o que importa mais par que se justifique o sopro de um dia insurgente? Pois digo: A luta. A inconsciente força que nos faz remar, que nos faz desistir da vela balão e dos espartilhos, das botas e dos jasmins, é o que nos diferencia, e na imensidão de merda de um parque de homens, os que lutam deixam marcas que mais tardes serão chamadas feias, que apenas incomodarão, mas que não poderão ser esquecidas pelos adeptos do perfeitismo (é essa a palavra), que esconde o nivelar para baixo, para que a merda tome novas formas e os subjugados sintam-se plenos de vida e liberdade a ponto de se assustarem com seu reflexo no espelho.

...

__ Gravado.

__ Lutai para poder opinar ao nascer de novo, quando queres ser o que queres ser, e se queres ter o que podes ver, sem saber porque. Pois se a luta morre, morre o homem e perdura a crença de que o homem padece, sem saber de que.

E o tipógrafo entediado murmura:

__ As palavras acabaram.

Em resposta lhe disse:

__ Quase bem a tempo.

07 de agosto de 2012