Ou eu ou ele!
Ou eu ou ele! A voz raivosa ecoava no seu interior. Que fizera para que aquele homem tivesse tanto ódio de sua figura pequena e insignificante? Nunca podia chegar perto; sequer poderia estar ao alcance de sua vista que o tal esbravejava sem parar.
O menino não tinha saída. Para não acontecer o pior o melhor era virar fumaça. Não! A melhor saída era desaparecer, ficar invisível. Isso ele sabia fazer, porém, algumas vezes não conseguia. Sua mãe tentava, mas no final de tantas brigas e xingamentos, ela optava pelo lado mais fácil. Talvez, acreditasse que as coisas um dia se arranjariam. O menino crescia, todos percebiam, e tudo que acontecia de ruim entre o marido e o menino ela culpava a puberdade. São os hormônios, claro. A fase de sapo que levava o menino a ser respondão, chato, antipático. Defeito nenhum havia no novo esposo. Era um santo homem, apenas um pouco nervoso, esquentado, mas coitado, trabalhava demais. E muitas vezes, procurava consolo nas pingas que derramava goela abaixo.
Ou eu ou ele! De que lado ficaria? Esperava que esse dia não chegasse porque se fosse para escolher, por mais que doesse o coração, já sabia a resposta. No momento, melhor era deixar esses pensamentos sombrios pra lá. A vida já tinha sido amarga demais. Ia cuidar do jantar, pois o marido logo chegaria.
Enquanto isso, o menino estava na escola. Triste era saber que as coisas para ele não iam bem. Lá também professores, diretor, pessoal da secretaria, da cozinha e da limpeza torciam para que seu filho fosse expulso, e faltava muito pouco pra que isso acontecesse. O menino não tinha limites, não obedecia a ninguém. Regras, para ele, nem pensar! Somente uma pessoa enxergava o menino com outros olhos.
A bibliotecária nem precisava usar óculos, mas era a única pessoa que conseguia fazer o menino entrar no eixo. O que ela enxergara no menino? Ninguém compreendia como ela achara o caminho, mas o certo era concordar que fizera milagre. Bastava o menino começar a aprontar, alguém o mandava ficar de castigo na biblioteca, e lá no meio dos livros ele sentia-se no céu.
O tempo ia passando, o menino aprontando, os castigos se multiplicando e o menino cheio de marcas pelo corpo. Ninguém sabia onde ele arranjara tantas brigas. Não imaginavam que quando o mandavam para casa o padrasto o espancava. Quando ele estava à vista do homem estranho que hoje ocupava o espaço de seu pai, somente isso já era motivo para ser maltratado até que o sangue escorresse.
Quem sabia desses maus tratos? Sua mãe, os vizinhos, a bibliotecária e uma professora, porém todos calavam. Ninguém queria se envolver... Ninguém queria comprar briga; melhor era deixar como estava porque pior não ficaria. Era nisso que acreditavam. Como estavam enganados!
Chegara o dia de a bibliotecária ser transferida. O que fazer? Procuraria uma das professoras e pediria um favor. Por tudo que fosse sagrado ela deveria zelar por aquele menino, e nunca, em hipótese alguma deveria manda-lo pra casa quando ele aprontasse alguma! Contou pra professora o que sabia e ela dera sua palavra de honra que a partir daquele momento tornar-se-ia guardiã do menino.
A bibliotecária despediu-se do garoto e pela primeira vez, o menino ao abraça-la deixou suas lágrimas correrem livremente sem temer demonstrar fraqueza. Ele a amava, e sabia que era amado. Porém, a promessa não fora cumprida, e o dia da decisão chegara.
Ou eu ou ele! Voz insistente e decidida que ouvira horas antes de pegar no sono. Sabia que o padrasto dava um ultimato e sua mãe sem titubear deixara sair dos lábios a sentença:
- Não se preocupe José, amanhã o menino vai direto pra o olho da rua. Entre você e ele, não preciso pensar pra lhe dar a resposta.
O menino nunca aprontara tanto quanto hoje, parecia que estava ensandecido. Foi mandado pra casa com um bilhete que só entraria na escola com a presença de um dos pais. Ele sabia que a sova seria das boas, e antes que a mãe tomasse a decisão, ele resolveria por ela. Pegou uma corda, amarrou-a no pé de castanhola, e ali, pôs fim a sua vida.
No funeral, a mãe desmaiava e chorava pelo ‘filho querido’. O padrasto arredio estava na barraca tomando umas e outras. O pessoal da escola estarrecido e envergonhado olhava para o pequerrucho que tinha um palmo de língua roxa, parecendo dizer a cada um deles: ‘eu só queria chamar atenção de vocês’. A professora que quebrara a promessa, curvada, sussurrava um pedido de perdão para ouvidos que nunca mais poderia ouvir uma palavra sequer. A bibliotecária chorava por ter largado a tarefa, e, com imensurável perda aprendera uma lição: Recebera uma incumbência e repassara para outrem. Por sua causa, o menino desistira de continuar acreditando num novo amanhã. Pois, todas as vezes que ele era mandado à biblioteca, ela sentava com ele, e ali, ambos faziam longas viagens nas estradas das letras.
PS. FATO VERÍDICO.
05/08/12