Sentença do coração
O sino da igreja matriz interrompeu Pe. João com três baladas fortes, inoportunas, no exato momento em que ele encomendava o corpo do prefeito da cidade.
Como parte dos preparativos para as comemorações do centenário de Carmo do Rio Claro, Pe. João, meticuloso com as coisas do céu e zeloso com as da terra, não se esquecera de verificar cada detalhe. E o sino da igreja, vindo de Portugal e incorporado aos sentimentos cívicos e religiosos do povo, passara também por cuidadosa vistoria.
Para surpresa de todos, algo estava acontecendo na pacata Carmo do Rio Claro. Nos seus abismos, o medo pede detalhes. Aqui e ali, em cada esquina e em cada casa não se ouvia outra conversa. Os mais vulneráveis e crédulos rezavam, amedrontados. E quanto mais se falava, nova versão, inverossímil ou não, juntava-se a tantas outras. Os preparativos para a grande festa do centenário, com presença de autoridades e até do governador do Estado, não mais interessavam a ninguém.
Bandeira a meio pau, luto decretado e feriado municipal, assim era o retrato de Carmo do Rio Claro naquela manhã de quarta-feira. O “Binômio”, orgulhoso de suas lutas cívicas e democráticas em prol do povo carmelitano, estampava, nas primeiras luzes do dia, a sua mais doída manchete: “Mártir do centenário é assassinado com três tiros, e o sino toca, intempestivamente, três vezes”.
E com um texto forte e interpretativo, esgotado em poucos minutos – recorde de vendagem – pintava em inexorável preto e branco a comoção da cidade:
“Desceu ao tumulo, em sua querida terra natal, na tarde de ontem, o prefeito Dr. Antônio de Pádua Silva. Carmo do Rio Claro o viu nascer, crescer e hoje chora, consternada, a sua morte. Formado em medicina no Rio de Janeiro, voltou, logo após a colocação de grau e a residência médica, aos braços de seus amigos e conterrâneos, que fizeram dele, na mais expressiva votação no Brasil, o seu mais jovem e querido mandatário”.
Pe. João, que lia o jornal, foi interrompido pelo investigador de polícia da cidade, que o intimou a prestar depoimento sobre o crime. Recebeu a intimação com serenidade. Ninguém jamais o vira sem a sua velha e surrada batina. Doutor em Filosofia e Teologia "summa cum laude probatus", pela Universidade Gregoriana de Roma, onde se ordenou padre, fazia parte da elite intelectualizada da Igreja Católica. Seus pares ocupavam os cargos mais representativos na hierarquia da Igreja. Eram bispos e cardeais, e de alguns se falava como prováveis candidatos ao Trono de Pedro. Entretanto Pe. João abdicou, peremptoriamente, de qualquer cargo a ele oferecido, sempre. Exerceu o múnus sacerdotal como professor, brilhante e inesquecível, e como reitor de Seminário.
Na hora marcada, Pe João compareceu à Delegacia de Polícia. Na sala pequena encontravam-se, posicionados, o Delegado, Dr. Cláudio, um escrivão e dois investigadores. Pe. João, respeitosamente, cumprimentou-os com um aceno de cabeça e sentou-se numa cadeira posta em frente à mesa do Dr. Cláudio.
– Pe.João - disse o delegado -, foi instaurado inquérito policial sobre o assassinato do prefeito. Mandei intimá-lo porque acho que o senhor muito poderá contribuir para elucidar o fato. O que o senhor tem a dizer a respeito?
Atendi à sua intimação e me perguntava em que poderia ajudá-lo. Nenhuma resposta. Sinto, portanto, desapontá-lo, Dr. Cláudio.
– O senhor tinha alguma relação de amizade com o prefeito?
– Sim. Não apenas com ele, mas também com o seu pai e com seu avô.
– Algum penitente, em confissão, relatou algo sobre o crime?
– Não, senhor, e ainda que o fizesse, não lhe diria.
– Mas, por quê?
– Porque é inviolável a oitiva da confissão. E seu segredo é sagrado.
– Eu posso mandar prendê-lo, por isso.
– Pois que o faça, eu estou na sua frente.
– Por que o sino da igreja tocou, fora de hora?
– Não sei. Verifiquei o local, logo após o acontecimento. Acompanhado de muitos paroquianos, constatamos normalidade em tudo. Nada fora violado.
Nada mais lhe foi perguntado, e Pe. João retirou-se da Delegacia. Seus passos, tranqüilos, e ainda seguros, conduziram-no à Casa Paroquial. Mas o dia haveria de cobrar-lhe mais serenidade. Defronte de sua casa, aguardando-o, estavam a televisão, e muitos curiosos.
Ali mesmo na calçada atendeu ao apelo do repórter e, pacientemente, respondeu a cada pergunta, dúvida, insinuação. E terminou dizendo: “o foco das investigações, neste momento triste para todos nós: família, amigos e o povo dessa terra, certamente está mal determinado. O Dr. Antônio de Pádua Silva, médico e prefeito de Carmo do Rio Claro, foi brutalmente assassinado com três tiros de espingarda. O assassino, mais do que tirar-lhe o mandato que o povo lhe outorgara, ceifou-lhe a juventude, os ideais e a esperança. O sino da igreja matriz não o fez tombar com o seu peso, e nem o atingiu com três tiros fatais. Entretanto, não se sabe por que, para cada tiro, uma badalada se fez ouvir, forte, no coração de cada um de nós no momento de suas exéquias. Procurem as autoridades policiais constituídas do município empregar a sua inteligência e, com determinação, identificar o autor do crime. "Res non verba", fato e não meras palavras, vazias e acéfalas, espera o nosso enlutado povo”.
O domingo mal rompera e nas esquinas de Carmo do Rio Claro os moradores cochichavam, ainda sonolentos, em pequenos grupos. Alguns, mais exaltados, deitavam lenha na fogueira. Acusavam a polícia - sem pista e sem rumo - de incipiente e medrosa. Exigiam reforço da capital, a criação de força-tarefa: Ministério Público, Polícia Federal, e até o diabo, se necessário fosse. Afinal, o sino não tocara? Por quê?
Ninguém mais sabia, ao certo, seu nome de batismo. Mais conhecido e popular, não se tinha conhecimento de outro na história da cidade. Vivia de pequenos favores e de algumas poucas tarefas, quando estava sóbrio. Odiado por uns poucos, fazia transitar, entretanto, a sua alegria entre o restante da população, que dele falava com entusiasmo. Respondia pelo codinome “Cana Poética”. Conta que, numa redação escolar, sobre literatura, certo aluno o citou como “grande poeta da língua portuguesa”. E senão era, ostentava, contudo, o título de trovador, amado em toda a região Sul mineira.
Sua pena satírica já o havia levado às grades da cadeia pública. Em época de eleição, quase sempre era contratado por algum político inescrupuloso, que o mantinha em estado permanente de embriaguez. Nessa dimensão alterada de consciência, a sátira e o burlesco ganhavam expressão. Com vigor poético seduzia gregos e troianos, e sua boca e sua pena vertiam o riso e lágrimas.
Mas por onde andaria Cana Poética? Ninguém mais o vira. A história recente de Carmo do Rio Claro com ele se identificava, e nesse momento conturbado faziam falta sua presença alegre e sua censura jocosa. As informações sobre seu paradeiro tinham a mesma atmosfera de mistério que se respirava em cada canto da cidade. Chegou-se a falar de sua nova condição de alcoólotra abstêmio e de sua vinculação ao grupo Alcoólicos Anônimos, na vizinha cidade de Alfenas.
Com a repercussão da entrevista do Pe. João, com o clamor da população carmelitana, a autoridade policial sentiu-se pressionada. E começou, então, a agir. As intimações sucediam-se como folhas ao vento. Um certo pânico instalou-se entre as pessoas mais humildes, temerosas de serem usadas como boi-de-piranha. Afinal, exigia-se a prisão do criminoso. Mas quem seria? Quem teria tido coragem de cometer um ato violento como aquele, afastando do convívio da população um filho amado e querido de todos, jovem, bonito, médico e prefeito. “E perfeito...”, suspiravam, tristes, as jovens donzelas.
Ana Maria, herdeira única dos bens de tradicional e rica família carmelitana, desfilava seus automóveis pela cidade, quase sempre em desabalada corrida. Tivera um breve namoro com falecido prefeito, e não escondia de ninguém sua obstinada paixão por ele. Seu temperamento forte e decidido acrescentava tons à sua personalidade. De sua boca ouvia-se sempre uma estridente e gostosa gargalhada. Sabia-se desejada por muitos. Prazer maior sentia em seduzir e enrubescer os homens, intimidando-os. Sabia vestir-se e valorizar seu belo corpo, mostrando aqui, insinuando ali, causando alucinações. Em berço de ouro nascera e, filha única, tivera sempre os desejos satisfeitos. Sua excentricidade fazia parte do folclore mais rico da cidade. Gostava de cavalgar, e nos esportes demonstrava invejável coragem e ousadia; os banhos na piscina de sua casa e nas cachoeiras da região constituíam-se num presente para os jovens, que se punham de tocaia, atentos, esperando Ana Maria, nua. Gostava, também, de armas. Em sua fazenda, era vista praticando tiro.
Com esse perfil, e sem álibi contundente, Ana Maria foi indiciada e acusada de matar o ex-namorado e prefeito.
Como nem tudo que é real é crível, Ana Maria foi presa e solta pela lei, que lhe concedera o benefício de responder o processo em liberdade, agora encaminhado à justiça, para decisão de júri popular.
Advogados criminalistas, renomados e regiamente pagos, foram contratados e trazidos de fora pelas duas famílias envolvidas: a da vítima e a da ré.
Ninguém poderia imaginar que a festa de centenário; ansiosamente aguardada; cederia lugar ao julgamento pelo assassinato do prefeito. Nunca a verdade ou os fatos a ela inerentes ocuparam tantas mentes e tantos corações em Carmo do Rio Claro. A obsessão pela verdade alimentava cada um dos moradores, exceto, é claro, o autor da tragédia; caminhante anônimo na pacata Carmo do Rio Claro? Mas quem seria e por que cometera aquele crime? Em alguns moradores da cidade percebia-se claramente histeria. De hábitos pacatos, cordiais, religiosos e rurais, a cidade, sem dúvida, padecia de algum mal. Mas nem tudo, é certo, era motivo de padecimento. Hotéis, pousadas, acampamentos improvisados, bares e restaurantes, enfim, toda a cidade se nutria e mal dava conta de atender à inesperada demanda.
Enfim, o dia do julgamento.
Como manda a lei, Ana Maria, na condição de ré, encontrava-se escoltada por dois policiais militares. Usava um vestido preto, o que fazia sobressair ainda mais seu rosto moreno, de olhos perguntadores, que Cana Poética sabia louvar: “Rir, caminhar, falar e olhar e até pensar identifica Ana Maria, que nasceu aos pés da serra da Tormenta e às margens do lago de Furnas; por isso ela é livre e misteriosa, misteriosa e livre como as montanhas de Minas, "Montani semper liberi" (Os montanheses serão sempre livres)”. Não obstante a situação de acusada de homicídio, Ana Maria mantinha-se serena, e olhava a cada um dos sete jurados com confiança. A dor é o outro lado da alegria, mas nada, nenhum músculo de sua face e de corpo denunciava medo, ansiedade; procurava compreender cada intenção das partes adversas e do volumoso processo que os advogados compulsavam, avidamente, e que faziam, às vezes, tremular em suas mãos, quase aos gritos. Atenta às minúcias do espetáculo de palavras que se arrastou pela madrugada, Ana Maria era a própria imagem da altivez; singularidade que a iluminava naquele palco de vaidades e acusações.
Assistia a promotoria, renomado advogado criminalista, vindo de São Paulo. E no Rio de Janeiro Ana Maria contratara, para assistente de defesa, três dos melhores criminalistas do País.
Um jovem juiz presidia o tribunal do júri, naquele início de tarde.
Com o libelo acusatório pouco ou quase nada sobrou de Ana Maria. Ela foi impiedosamente execrada, e sua vida e sua alma devassadas com insensatez e crueldade. A paixão não correspondida pelo ex-namorado a teria levado - num gesto de fúria - a alvejá-lo com três tiros de espingarda, segundo a acusação. E ao som de inflada retórica, a acusação haveria, ainda, de proclamá-la “messalina, dissoluta e lasciva,” incapaz, portanto, de viver e de conviver numa cidade de tradições e princípios morais sólidos. Nesse ponto Ana Maria não se conteve e encheu a pequena e improvisada sala do tribunal do júri com incontida gargalhada. O Juiz, neófito, advertiu-a, com indisfarçável perturbação.
Ana Maria estudara na Europa e, na Universidade de Paris, graduara-se em Sociologia. Falava fluentemente várias línguas e viajava com assiduidade à Europa. Vivia em Carmo do Rio Claro, principalmente porque amava cada pedaço da cidade e da região. Ali nascera e ali queria viver e morrer. Ali estava, enfim, o indicador subjetivo e objetivo de sua felicidade. Amava de forma comovente a serra da Tormenta, e por Nossa Senhora Aparecida, em seu cume instalada, nutria fervorosa devoção.
Na defesa de Ana Maria alternaram-se os seus brilhantes e competentes criminalistas. Ao descreverem o prefeito assassinado, Dr. Antônio de Pádua Silva, e a relação de amor que mantivera com Ana Maria, ela colocou as mãos no rosto e, abaixando a cabeça, chorou. Emocionado, o tribunal também chorou.
O julgamento estendeu-se pela noite adentro, e a população, dentro e fora do tribunal, não arredava pé.
Depois de exaustivo debate, entremeado de réplicas e tréplicas, ausentam-se os jurados para votação em sala secreta. De quesito em quesito, formulados pelo juiz e votados pelos jurados, foi-se desenhando o ansiado veredicto de condenação ou absolvição.
O silencio era aterrador. Nada se ouvia, mas o coração batia descompassado em cada peito. Ana Maria, entretanto, continuava serena. De pé, aguardando o veredicto, ela arrebatava para si a atenção de todos. Ouvido nenhum para a sentença.
A vigília acabou. A cidade, enfim, podia dormir e voltar à sua rotina preguiçosa. E Ana Maria, inocentada, poderia se lavar das insidiosas acusações nas águas cristalinas de sua terra. A dúvida sobreviveria ao tempo, é certo, e haveria de marulhar em cada consciência; mas o que importa isso diante da vida?
Como parte dos preparativos para as comemorações do centenário de Carmo do Rio Claro, Pe. João, meticuloso com as coisas do céu e zeloso com as da terra, não se esquecera de verificar cada detalhe. E o sino da igreja, vindo de Portugal e incorporado aos sentimentos cívicos e religiosos do povo, passara também por cuidadosa vistoria.
Para surpresa de todos, algo estava acontecendo na pacata Carmo do Rio Claro. Nos seus abismos, o medo pede detalhes. Aqui e ali, em cada esquina e em cada casa não se ouvia outra conversa. Os mais vulneráveis e crédulos rezavam, amedrontados. E quanto mais se falava, nova versão, inverossímil ou não, juntava-se a tantas outras. Os preparativos para a grande festa do centenário, com presença de autoridades e até do governador do Estado, não mais interessavam a ninguém.
Bandeira a meio pau, luto decretado e feriado municipal, assim era o retrato de Carmo do Rio Claro naquela manhã de quarta-feira. O “Binômio”, orgulhoso de suas lutas cívicas e democráticas em prol do povo carmelitano, estampava, nas primeiras luzes do dia, a sua mais doída manchete: “Mártir do centenário é assassinado com três tiros, e o sino toca, intempestivamente, três vezes”.
E com um texto forte e interpretativo, esgotado em poucos minutos – recorde de vendagem – pintava em inexorável preto e branco a comoção da cidade:
“Desceu ao tumulo, em sua querida terra natal, na tarde de ontem, o prefeito Dr. Antônio de Pádua Silva. Carmo do Rio Claro o viu nascer, crescer e hoje chora, consternada, a sua morte. Formado em medicina no Rio de Janeiro, voltou, logo após a colocação de grau e a residência médica, aos braços de seus amigos e conterrâneos, que fizeram dele, na mais expressiva votação no Brasil, o seu mais jovem e querido mandatário”.
Pe. João, que lia o jornal, foi interrompido pelo investigador de polícia da cidade, que o intimou a prestar depoimento sobre o crime. Recebeu a intimação com serenidade. Ninguém jamais o vira sem a sua velha e surrada batina. Doutor em Filosofia e Teologia "summa cum laude probatus", pela Universidade Gregoriana de Roma, onde se ordenou padre, fazia parte da elite intelectualizada da Igreja Católica. Seus pares ocupavam os cargos mais representativos na hierarquia da Igreja. Eram bispos e cardeais, e de alguns se falava como prováveis candidatos ao Trono de Pedro. Entretanto Pe. João abdicou, peremptoriamente, de qualquer cargo a ele oferecido, sempre. Exerceu o múnus sacerdotal como professor, brilhante e inesquecível, e como reitor de Seminário.
Na hora marcada, Pe João compareceu à Delegacia de Polícia. Na sala pequena encontravam-se, posicionados, o Delegado, Dr. Cláudio, um escrivão e dois investigadores. Pe. João, respeitosamente, cumprimentou-os com um aceno de cabeça e sentou-se numa cadeira posta em frente à mesa do Dr. Cláudio.
– Pe.João - disse o delegado -, foi instaurado inquérito policial sobre o assassinato do prefeito. Mandei intimá-lo porque acho que o senhor muito poderá contribuir para elucidar o fato. O que o senhor tem a dizer a respeito?
Atendi à sua intimação e me perguntava em que poderia ajudá-lo. Nenhuma resposta. Sinto, portanto, desapontá-lo, Dr. Cláudio.
– O senhor tinha alguma relação de amizade com o prefeito?
– Sim. Não apenas com ele, mas também com o seu pai e com seu avô.
– Algum penitente, em confissão, relatou algo sobre o crime?
– Não, senhor, e ainda que o fizesse, não lhe diria.
– Mas, por quê?
– Porque é inviolável a oitiva da confissão. E seu segredo é sagrado.
– Eu posso mandar prendê-lo, por isso.
– Pois que o faça, eu estou na sua frente.
– Por que o sino da igreja tocou, fora de hora?
– Não sei. Verifiquei o local, logo após o acontecimento. Acompanhado de muitos paroquianos, constatamos normalidade em tudo. Nada fora violado.
Nada mais lhe foi perguntado, e Pe. João retirou-se da Delegacia. Seus passos, tranqüilos, e ainda seguros, conduziram-no à Casa Paroquial. Mas o dia haveria de cobrar-lhe mais serenidade. Defronte de sua casa, aguardando-o, estavam a televisão, e muitos curiosos.
Ali mesmo na calçada atendeu ao apelo do repórter e, pacientemente, respondeu a cada pergunta, dúvida, insinuação. E terminou dizendo: “o foco das investigações, neste momento triste para todos nós: família, amigos e o povo dessa terra, certamente está mal determinado. O Dr. Antônio de Pádua Silva, médico e prefeito de Carmo do Rio Claro, foi brutalmente assassinado com três tiros de espingarda. O assassino, mais do que tirar-lhe o mandato que o povo lhe outorgara, ceifou-lhe a juventude, os ideais e a esperança. O sino da igreja matriz não o fez tombar com o seu peso, e nem o atingiu com três tiros fatais. Entretanto, não se sabe por que, para cada tiro, uma badalada se fez ouvir, forte, no coração de cada um de nós no momento de suas exéquias. Procurem as autoridades policiais constituídas do município empregar a sua inteligência e, com determinação, identificar o autor do crime. "Res non verba", fato e não meras palavras, vazias e acéfalas, espera o nosso enlutado povo”.
O domingo mal rompera e nas esquinas de Carmo do Rio Claro os moradores cochichavam, ainda sonolentos, em pequenos grupos. Alguns, mais exaltados, deitavam lenha na fogueira. Acusavam a polícia - sem pista e sem rumo - de incipiente e medrosa. Exigiam reforço da capital, a criação de força-tarefa: Ministério Público, Polícia Federal, e até o diabo, se necessário fosse. Afinal, o sino não tocara? Por quê?
Ninguém mais sabia, ao certo, seu nome de batismo. Mais conhecido e popular, não se tinha conhecimento de outro na história da cidade. Vivia de pequenos favores e de algumas poucas tarefas, quando estava sóbrio. Odiado por uns poucos, fazia transitar, entretanto, a sua alegria entre o restante da população, que dele falava com entusiasmo. Respondia pelo codinome “Cana Poética”. Conta que, numa redação escolar, sobre literatura, certo aluno o citou como “grande poeta da língua portuguesa”. E senão era, ostentava, contudo, o título de trovador, amado em toda a região Sul mineira.
Sua pena satírica já o havia levado às grades da cadeia pública. Em época de eleição, quase sempre era contratado por algum político inescrupuloso, que o mantinha em estado permanente de embriaguez. Nessa dimensão alterada de consciência, a sátira e o burlesco ganhavam expressão. Com vigor poético seduzia gregos e troianos, e sua boca e sua pena vertiam o riso e lágrimas.
Mas por onde andaria Cana Poética? Ninguém mais o vira. A história recente de Carmo do Rio Claro com ele se identificava, e nesse momento conturbado faziam falta sua presença alegre e sua censura jocosa. As informações sobre seu paradeiro tinham a mesma atmosfera de mistério que se respirava em cada canto da cidade. Chegou-se a falar de sua nova condição de alcoólotra abstêmio e de sua vinculação ao grupo Alcoólicos Anônimos, na vizinha cidade de Alfenas.
Com a repercussão da entrevista do Pe. João, com o clamor da população carmelitana, a autoridade policial sentiu-se pressionada. E começou, então, a agir. As intimações sucediam-se como folhas ao vento. Um certo pânico instalou-se entre as pessoas mais humildes, temerosas de serem usadas como boi-de-piranha. Afinal, exigia-se a prisão do criminoso. Mas quem seria? Quem teria tido coragem de cometer um ato violento como aquele, afastando do convívio da população um filho amado e querido de todos, jovem, bonito, médico e prefeito. “E perfeito...”, suspiravam, tristes, as jovens donzelas.
Ana Maria, herdeira única dos bens de tradicional e rica família carmelitana, desfilava seus automóveis pela cidade, quase sempre em desabalada corrida. Tivera um breve namoro com falecido prefeito, e não escondia de ninguém sua obstinada paixão por ele. Seu temperamento forte e decidido acrescentava tons à sua personalidade. De sua boca ouvia-se sempre uma estridente e gostosa gargalhada. Sabia-se desejada por muitos. Prazer maior sentia em seduzir e enrubescer os homens, intimidando-os. Sabia vestir-se e valorizar seu belo corpo, mostrando aqui, insinuando ali, causando alucinações. Em berço de ouro nascera e, filha única, tivera sempre os desejos satisfeitos. Sua excentricidade fazia parte do folclore mais rico da cidade. Gostava de cavalgar, e nos esportes demonstrava invejável coragem e ousadia; os banhos na piscina de sua casa e nas cachoeiras da região constituíam-se num presente para os jovens, que se punham de tocaia, atentos, esperando Ana Maria, nua. Gostava, também, de armas. Em sua fazenda, era vista praticando tiro.
Com esse perfil, e sem álibi contundente, Ana Maria foi indiciada e acusada de matar o ex-namorado e prefeito.
Como nem tudo que é real é crível, Ana Maria foi presa e solta pela lei, que lhe concedera o benefício de responder o processo em liberdade, agora encaminhado à justiça, para decisão de júri popular.
Advogados criminalistas, renomados e regiamente pagos, foram contratados e trazidos de fora pelas duas famílias envolvidas: a da vítima e a da ré.
Ninguém poderia imaginar que a festa de centenário; ansiosamente aguardada; cederia lugar ao julgamento pelo assassinato do prefeito. Nunca a verdade ou os fatos a ela inerentes ocuparam tantas mentes e tantos corações em Carmo do Rio Claro. A obsessão pela verdade alimentava cada um dos moradores, exceto, é claro, o autor da tragédia; caminhante anônimo na pacata Carmo do Rio Claro? Mas quem seria e por que cometera aquele crime? Em alguns moradores da cidade percebia-se claramente histeria. De hábitos pacatos, cordiais, religiosos e rurais, a cidade, sem dúvida, padecia de algum mal. Mas nem tudo, é certo, era motivo de padecimento. Hotéis, pousadas, acampamentos improvisados, bares e restaurantes, enfim, toda a cidade se nutria e mal dava conta de atender à inesperada demanda.
Enfim, o dia do julgamento.
Como manda a lei, Ana Maria, na condição de ré, encontrava-se escoltada por dois policiais militares. Usava um vestido preto, o que fazia sobressair ainda mais seu rosto moreno, de olhos perguntadores, que Cana Poética sabia louvar: “Rir, caminhar, falar e olhar e até pensar identifica Ana Maria, que nasceu aos pés da serra da Tormenta e às margens do lago de Furnas; por isso ela é livre e misteriosa, misteriosa e livre como as montanhas de Minas, "Montani semper liberi" (Os montanheses serão sempre livres)”. Não obstante a situação de acusada de homicídio, Ana Maria mantinha-se serena, e olhava a cada um dos sete jurados com confiança. A dor é o outro lado da alegria, mas nada, nenhum músculo de sua face e de corpo denunciava medo, ansiedade; procurava compreender cada intenção das partes adversas e do volumoso processo que os advogados compulsavam, avidamente, e que faziam, às vezes, tremular em suas mãos, quase aos gritos. Atenta às minúcias do espetáculo de palavras que se arrastou pela madrugada, Ana Maria era a própria imagem da altivez; singularidade que a iluminava naquele palco de vaidades e acusações.
Assistia a promotoria, renomado advogado criminalista, vindo de São Paulo. E no Rio de Janeiro Ana Maria contratara, para assistente de defesa, três dos melhores criminalistas do País.
Um jovem juiz presidia o tribunal do júri, naquele início de tarde.
Com o libelo acusatório pouco ou quase nada sobrou de Ana Maria. Ela foi impiedosamente execrada, e sua vida e sua alma devassadas com insensatez e crueldade. A paixão não correspondida pelo ex-namorado a teria levado - num gesto de fúria - a alvejá-lo com três tiros de espingarda, segundo a acusação. E ao som de inflada retórica, a acusação haveria, ainda, de proclamá-la “messalina, dissoluta e lasciva,” incapaz, portanto, de viver e de conviver numa cidade de tradições e princípios morais sólidos. Nesse ponto Ana Maria não se conteve e encheu a pequena e improvisada sala do tribunal do júri com incontida gargalhada. O Juiz, neófito, advertiu-a, com indisfarçável perturbação.
Ana Maria estudara na Europa e, na Universidade de Paris, graduara-se em Sociologia. Falava fluentemente várias línguas e viajava com assiduidade à Europa. Vivia em Carmo do Rio Claro, principalmente porque amava cada pedaço da cidade e da região. Ali nascera e ali queria viver e morrer. Ali estava, enfim, o indicador subjetivo e objetivo de sua felicidade. Amava de forma comovente a serra da Tormenta, e por Nossa Senhora Aparecida, em seu cume instalada, nutria fervorosa devoção.
Na defesa de Ana Maria alternaram-se os seus brilhantes e competentes criminalistas. Ao descreverem o prefeito assassinado, Dr. Antônio de Pádua Silva, e a relação de amor que mantivera com Ana Maria, ela colocou as mãos no rosto e, abaixando a cabeça, chorou. Emocionado, o tribunal também chorou.
O julgamento estendeu-se pela noite adentro, e a população, dentro e fora do tribunal, não arredava pé.
Depois de exaustivo debate, entremeado de réplicas e tréplicas, ausentam-se os jurados para votação em sala secreta. De quesito em quesito, formulados pelo juiz e votados pelos jurados, foi-se desenhando o ansiado veredicto de condenação ou absolvição.
O silencio era aterrador. Nada se ouvia, mas o coração batia descompassado em cada peito. Ana Maria, entretanto, continuava serena. De pé, aguardando o veredicto, ela arrebatava para si a atenção de todos. Ouvido nenhum para a sentença.
A vigília acabou. A cidade, enfim, podia dormir e voltar à sua rotina preguiçosa. E Ana Maria, inocentada, poderia se lavar das insidiosas acusações nas águas cristalinas de sua terra. A dúvida sobreviveria ao tempo, é certo, e haveria de marulhar em cada consciência; mas o que importa isso diante da vida?
Roberto Gonçalves
Escritor
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