O Revoltado

Quanto mais Rostan entendia o que acontecia em torno de si, mais hostil se tornava. Sentia-se num certo privilégio imaginário sobre tudo. Percebia o certo, o bom, mas tinha prazer em tentar estragar tudo. Não queria amar ninguém, queria apenas contradizer e declinar os bons partidos que lhe apareciam. Desejava muita gente dependendo de sua vontade para realizar coisas e se deliciava fantasiando a frustração das pessoas diante de sua recusa. Rejeitava convite de amigos. Por vezes se comprometia a participar de algum evento artístico, junto de pessoas que acreditavam em seu talento como pintor e escultor, e não aparecia. Isolava-se num lugar, durante esses acontecimentos, e permanecia silencioso, com um sorriso satisfeito. Suspendia seu pensamento, seu sentimento, tinha medo de que o arrependimento o tocasse. Fixava seu olhar para o muro enegrecido de fuligem, e congelava sua visão ali. Recusava-se sistematicamente afazer exames de consciência. Forçava em sua imaginação ser uma criatura distinta até da criação divina. Não queria Deus batendo em sua porta, e abominava a paciência e esperança de bons cristãos. Muito secretamente dizia a si mesmo: “não pedi essa merda de vida, nem essa porcaria de corpo, e posso muito bem rejeitar tudo, está meu poder isso”.

Começou a sustentar uma raiva de ver gente feliz, próspera, e fazia um movimento íntimo muito grande para não estimar vida em família, vida religiosa, vida social, cultural. Procurava uma cultura exclusiva e fazia isso de maneira arrogante.

Rostan já teimava em não fazer plano algum para sua vida, e nem muito menos suicidar-se. Um orgulho muito intenso o proibia a quase tudo. Ser indiferente à vida. Tentar passar por cima de tudo, isolar-se completamente era sua tendência. Porém, a maior parte de toda essa hostilidade era vivida dentro de si, silenciosamente. Poucas pessoas percebiam seu orgulho rígido. Mas, Rostan precisava viver da frustração alheia, necessitava da tristeza dirigia a ele, necessitava ser reconhecido como o indiferente mais procurado do mundo.

Não se importava em ser subordinado onde trabalhava, pois, a qualquer momento poderia largar tudo. Até se fazia de subserviente para atrair vítimas. Adorava, por vezes, fazer um belo trabalho, no atelier, para poder obter um reconhecimento que seria rejeitado com todas as suas forças publicamente. Acreditava que havia muita sabedoria em estreitar de maneira sarcástica seu próprio ser, na frente de todos. Se algum dia fosse premiado por uma bela escultura, acontecimento pelo qual ansiava muito, já havia até criado um discurso terrivelmente irônico e sádico para a ocasião, onde seu próprio ser seria reduzido a excrementos, e sua obra, a um monte de lixo. No fundo, no fundo esses pejorativos imaginados seriam dirigidos não a si, nem à sua obra, mas aos presentes para sua homenagem, no sentido de rebaixá-los a uma condição extremamente inferior diante de si. Algo do tipo: “Isso que realizei até aqui é o pior de mim, e nenhum de vocês foi capaz de perceber, por que são todos burros, cretinos, iludidos, não sabem com quem estão lidando...”.

Rostan tinha muito medo. Sabia que até onde sua memória alcançava havia sido a criança mais bondosa, mais acolhedora, o garoto mais popular entre os amigos, sempre rodeado de todos, e querido com todos. Queria perder a memória, entretanto esta só fazia fortificar-se cada vez mais em uma força contraditória. Essa força da memória era sua grande inimiga, não o deixava em paz. Não era mais criança, não queria mais aquele ser radiante e positivo do passado. Queria a ruptura completa com o passado, mas não sabia a razão disso. Em qual momento de sua vida aquela criança boa e inteligente havia sido abandonada, largada numa região desconhecida? A única falha da memória era onde o mal tinha tomado conta das decisões. Queria que sua infância não fizesse mais parte de sua história. Queria permanecer como um ser mítico, terrível, isolado. Queria ter nascido com o aspecto em que se encontrava, não queria ter pais, nem irmãos, nem família. Queria ter sido um ser pronto, acima das contingências e submissões humanas. Não queria ter poder sobre a humanidade, mas queria ser distinto dela.

Nos últimos meses vivia mais tenso do que nunca, com a vontade de ser hostil a tudo a crescer cada vez mais, e com o crescente passado lhe martelando.

Procurava estar cada vez mais ausente, fora e dentro de si. Até que acabou tendo um sonho. Estava sentado num lugar deserto, negro, rochoso. Repentinamente surgiu em sua frente um ser estranho. Parecia um homem, mas possuía uma boca enorme, com milhares de dentes, sempre a sorrir, olhos verdes saltados nas orbitas, expressão de raiva nas sobrancelhas espessas em contraste com a bocarra sorridente, poucos fios de cabelo, corpo pequeno e magro, cabeça enorme, roupa preta, botas e fraque. Gemia como se estivesse com dor. Rostan olhou para ele assustado, queria fugir, mas não conseguiu sair do lugar, e a criatura veio ferozmente em sua direção soltando uma gargalhada. Aproximou-se de Rostan e disse: eu sei quem é você, sei o que você quer. De mim você não vai conseguir nada. Eu não quero você, é desprezível, ridículo, estúpido. Posso até dar lhe conselhos para que consiga o que quer, mas não me ofereça nada, nem mesmo sua vida, não quero nada seu. Eu sei o que você quer ser, mas nem isso você consegue, por que não tem poder para nada. Você não foi feito para o que eu faço. Simplesmente queres fingir algo e só se ilude. Sua natureza é outra, suas capacidades estão bem visíveis, eu vejo. Queres aquilo que não te pertence, és um teimoso, és um fútil. Não me serve nem como o lodo que como todo dia. Quer me imitar e não sabe nem o que faz. Não tem idéia do que se passa nos fundamentos do lado de cá. Você não chega a tanto. Neste momento está sendo rejeitado por todos por que sua alma vacila suspensa, indecisa e tocada pelo mal, mas seu ser é equilibrado. Não nos serve aqui...

Rostan levantou dum salto, alta madrugada, a chuva batia na janela e formava uma cachoeira sobre os vidros. Saiu da cama e acendeu a luz. Olhava para todas as direções de seu quarto, parecia ver a todo o momento aquela criatura horrorosa. Aos poucos o sono foi voltando a fazer seu efeito, o medo foi se esgotando, a imagem daquele ser foi enfraquecendo, e ele foi acomodando-se novamente à cama, devagar, até que dormiu novamente.

Acordou tarde de seu segundo sono, e sentia-se diferente. Sua mãe ao vê-lo perguntou se queria que lhe preparasse algo para comer, respondeu que sim duma maneira feliz, pois era a primeira vez que se sentia acolhido e amado em muito tempo. Rostan se deu conta de que toda sua revolta interior não possuía suas raízes em problemas exteriores. Ele realmente não sabia o que era essa força anuladora, mas sabia que estava fortemente arraigada dentro de si mesmo, e era melhor sentir-se desorientado no mundo, em busca de algum sentido, do que simplesmente negar tudo...

Dimicop