E bem, e o resto?
O fim de uma história não é necessariamente o começo de outra. Não é o renascimento de uma decrépita fênix, nem o preenchimento dos buracos deixados. O fim é simplesmente o vácuo do infinito, restrito, que não interessa a nosso cadáver. A vida continua, mas o autor não põe no papel. Nossa mente escreve na alma. “E bem, e o resto?” Machado de Assis foi de uma ambigüidade sublime ao sugerir o titulo do ultimo capitulo de sua obra-prima – Dom Casmurro.
E bem, e o resto do meu casamento? E bem, e o resto do cigarro que está preste a queimar meus lábios? E da garrafa de uísque de apenas um trago? E o resto? O que me resta? Bem, o resto é que minha filha descobriu ainda pouco ter o vírus da AIDS, minha esposa há um tempo já é diabética e eu sou um alcoólatra inescrupuloso. Peguei o resultado do exame que fiz nos pulmões ontem. Não encontraram tumor nenhum ainda. “Graças a Deus” falou minha mulher dissimulando alegria. “Pelo menos isso” disse minha filha, cabisbaixa na mesa, em pleno jantar, na hora do anjo.
Lembro-me no dia que minha esposa disse que era diabética. Ela bebia muito água e urinava de vinte e vinte minutos. Sempre pela manhã ela comia um pão doce de coco. Nesse dia não comeu. “Tá fazendo dieta?” foi quando ela disse que estava com mais de 500mg de glicose em seu sangue, corroendo seus órgãos. Seu drama não me abalou. Mostrou-me o aparelho que comprou. Ela se acostumou rápido. Um mês mais pra frente minha filha chega em casa com o resultado do HIV positivo. Ambas choraram muito. Eu não derramei uma lagrima. Eu sabia que aquele namoradinho tatuado dela não era limpo. Ela disse que não pegou dele. Alguns caras abusaram dela em uma festa, segundo seu o relato. Estava bêbada. Fui negligente, admito. Fazer o quê?
Lembro-me quando ela chegou em casa com o novo namorado. Eu apertei a mão dele. Parecia educado. E era, pelo menos na minha frente. Ele fez a tatuagem depois: o nome da mãe em japonês. As letras eram bonitas na pele pálida dele, não nego. Não tive conversa com ela sobre o uso de preservativos, ela já era grandinha. Ia adiantar?
Recordo de quando comecei a fumar. Foi do nada. Eu e uns amigos do trabalho íamos toda quarta assistir o futebol em um bar. Quase todos fumavam. Menos eu e outro. Comecei a botar o cigarro na boca e a tragar sua essência. Não parei. O outro começou logo depois de mim. Um dia minha filha pegou um cigarro que eu matei e joguei no gramado. Eu fiquei observando-a. Ela o levou a boca e drenou um pouco do tabaco. Tossiu. Tinha apenas dez anos. Ou onze. Arranquei dela o cigarro e pisei. Em seguida dei-lhe um soco na boca. Quebrei dois dentes da pequena. Ela chorou muito. No mesmo dia a levamos para o dentista e minha esposa combinou com ela “Filha, diga ao dentista que você quebrou os dentes brincando de bicicleta e caiu. Tudo bem? Se não nunca você vera o papai de novo.” Apesar de não está falando comigo, ela aquiesceu. A pior fase não foi sua infância. Eu que o diga! Tudo deu certo. Os novos dentes não foram baratos. Mais eu lhe devia uns novos.
Lembro de quando ela nasceu. Não foi um dos dias mais felizes da minha vida. Soube por telefone, quando a criança estava com dois meses. Na tarde em que meus olhos tocaram o bebê foi amor a primeira vista. Minha filha recebeu o nome da avó materna. Não questionei. Casei-me com a mãe da criança, que eu mal conhecia na época.
Quase que me esqueço da noite em que um amigo meu me apresentou minha futura mulher. Embriagamos-nos na casa dele. Nem me lembro quem transou com quem. A única coisa que lembro foi da ressaca no dia seguinte. E também descobrir que esse meu amigo era gay.
Aproveitei muito minha infância, minha adolescência – onde descobrir as sensações do álcool – e a faculdade. Lá fiquei muito amigo de um cara, que futuramente descobriria que não era hetero. Descobrir do pior jeito.
Não me lembro do dia em que nasci. E como eu podia lembrar? Já estou falando asneira. Minha mãe me contava quase que diariamente, do dia de meu nascimento. Mas isso já é outra história, que não vou contar. E bem, e o resto? O resto é saber fantasiar a história dos meus pais, dos pais dos meus pais e de uma geração imensa de descendentes.
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos. Será que o resto é saber quem transmitiu AIDS para minha pequena ou se transei ou não com meu amigo da faculdade? Não! Tão extremosos ambos e tão queridos também. Embriagado ou não o que importa agora é o que restou. E o que restou foi à carcaça de um bêbado, casado com uma esposa diabética que tem uma filha aidética. O resto é saber conviver com tudo isso. Por mais que seja difícil, é minha filha – ou não. Minha mulher já se acostumou com as injeções de insulina e a furar os dedos todo santo dia. Fazer o quê? Vamos à história dos subúrbios!