O barbeiro

O barbeiro

Ao passar pela entrada do estabelecimento, uma barbearia ou cabeleireiro desconhecido, pois não havia placa alguma acima da portaria, deparei-me com um lugar razoavelmente sujo, cadeiras de modelos de barbearias antigas com estofos rasgados, paredes com a pintura descascando, chumaços de cabelos pelo chão. Apesar do grande movimento de pessoas e trânsito de carros, comércios e sons a toda altura que sempre se faziam ouvir na rua onde morava, dentro daquele lugar onde acabara de entrar havia um silêncio tal que pensei estar em outra dimensão, tudo parecia deserto, abandonado, decadente. O vento entrava uivando e, empurrando a sujeira e os restos de cabelos do chão, fazia torvelinhos com eles. Eram quatro horas da tarde, a luz do sol insidia em certos lugares, mas não mais em outros, vinha enfraquecida pelas densas nuvens que se formavam e pousava sobre os objetos espalhados pelo balcão anexo ao grande espelho, e sobre as cadeiras criando formas espectrais na embolorada parede do fundo da barbearia. Um banco de mais ou menos dois metros de comprimento, uns 40 centímetros de altura, com seu estofamento gasto e duro, estava encostado na parede logo atrás das cadeiras que estavam posicionadas em frente ao grande espelho na parede oposta. O teto era muito alto do qual pendiam, como estalactites flexíveis, enormes teias de aranha, empoeiradas e cheias de sujeiras de todo tipo. No fundo dessa mesma sala, única sala que compunha todo o estabelecimento, um rapaz de uns 25 a 30 anos estava deitado em um velho sofá, pernas cruzadas, mãos atrás da cabeça apoiando-a, olhava para o teto como se não houvesse mais nada de interessante para prestar atenção.

Logo que percebeu minha presença levantou num salto, e como um ser do além saindo da penumbra onde havia se escondido aproximou-se de mim lentamente, parecia um zumbi de filmes de terror:

- fala grande! O que vai ser hoje?

- corte normal.

- beleza patrão. O Sr. agüenta um pouco por ai, preciso ir ao banheiro.

Nunca o havia visto antes, e esse jeito de tratar estranhos como se fossem íntimos me desagradou muito. Saiu do pequeno banheiro e me ofereceu a capa que prendi no pescoço, para não ficar coberto pelos cabelos cortados. Estava calor e o lugar era quente e úmido. Logo embaixo do grande espelho havia uma porção de gavetas velhas sustentadas por um balcão de madeira também envelhecido. Havia uma grande desorganização de coisas sobre o balcão. O rapaz, barbeiro, abria e fechava as diversas gavetas para encontrar a tesoura certa. Remexia com certa estupidez nas tranqueiras que entupiam as gavetas, até que encontrou sua parceira e instrumento de trabalho.

Seu rosto, apesar da pouca idade, tinha um aspecto de sofrimento, seus olhos pareciam uma pintura desbotada, eram claros não por uma característica natural e sim por alguma moléstia, a pele estava vermelha de sol, cabelos curtos, com luzes, duas ou três tatuagens pelos braços, possuía um cheiro indefinível, roupa mais surrada que a minha, mãos de agricultor, sempre encardidas. Posicionou-se diante do espelho, logo atrás de mim, me perguntou se desejava um corte bem baixo, e respondi que sim.

Assim que começou o corte um rapaz estacionou sua moto bem em frente à entrada, desceu do veículo e veio até o barbeiro para cumprimentá-lo. Um diálogo entre eles começou e o corte de meu cabelo ficou por alguns minutos suspenso:

- e então Mané, você mudou ou ainda está morando lá para os lados da vila? Perguntou o homem da moto.

- estou morando na invasão, próximo desse bairro, há uns seis quarteirões daqui.

- mas você conseguiu por um bom pedaço? Quer dizer, como estão dividindo as coisas por lá? Quantas famílias estão por lá?

- olha! umas 80 pessoas... Consegui um pedaço pequeno e fiz um barraco ali mesmo. Não dá mais pra pagar aluguel, prefiro arriscar ali. Fizeram protestos, exigências, apareceu na TV, você não viu?

- não vi, e ainda bem que eu não estava por lá, poderia aparecer em frente as câmeras e alguém me reconhecer.

Uma chuva forte, de verão, desabou do lado de fora. A torrente de água se precipitava da calha do estabelecimento e atingia em cheio na moto estacionada, que ocupava metade da entrada. O dono da moto parecia não perceber esse fato e continuava conversando com seu interlocutor, olhando para a pesada chuva que obscurecia a paisagem pela sua intensidade.

O barbeiro continuou o corte no momento em que eu estava decidido e levantar-me e desistir de seu atendimento. Apesar de ter feito um bom trabalho, ele fazia o corte de meus cabelos quase sem para de conversar com o outro, não olhava para lugar algum, seus olhos não estavam fechados, mas pareciam inexistentes em alguns momentos, preenchidos por uma névoa que ocultava suas emoções. Endereçava suas palavras para seu colega que não era cliente e nem viera pedir atendimento.

Todo o aspecto do local somado a esse rapaz que ali trabalhava era triste para mim. Apesar de sua habilidade com a tesoura e a eficiência de seu serviço, não havia entusiasmo naqueles olhos, naquele rosto ressecado, por viver, provavelmente, uma vida cheia de privações, por lhe faltar inteligência e quem o ajudasse a ser melhor. Em meu sentimento ele era como um ser de outro mundo, com uma linguagem diferente, que comia coisas diferentes, vivia em lugar diferente e se relacionava com seres de uma espécie própria. Sentia um tipo de abismo entre eu e ele, como se o que ele me dissesse fosse pouco perceptível. Não havia nada no modo de comunicação entre nós que nos ligasse, a não ser a troca de serviço.

Porém, eu estava apenas criando monstrinhos em minha fantasia. Era só outra pessoa, pisando a mesma terra que eu. Só que isso não adiantava naquele momento. Embora houvesse um bom humor naquele jovem cabeleireiro pobre e malandro, ele me despertava uma insegurança terrível. Ao entrar naquele lugar parecia-me estar entrando numa cilada, numa armadilha, e eu não sabia por que.

A chuva parou.

Duas garotas chegaram depois. Uma delas era irmã do rapaz da tesoura e tinha uma linguagem maliciosa, embora fosse mais resignada que sua amiga, extremamente coquete, inteiramente enfeitada e exibida. Apesar de me sentir atraído pela beleza das duas, elas completavam a decadência daquele ambiente e o tornavam mais ameaçador. Não havia nada na conversa das duas com os rapazes ali que não tornasse evidente que elas estavam dispostas a buscar muito prazer e vantagens para si mesmas.

- E ai Carlão! Onde está trabalhando agora? Ou parou? Essa moto é sua? Perguntou a irmã do cabeleireiro.

- Estou pagando ela já fazem seis meses, e você? Tá sem fazer nada por ai? Respondeu o tal Carlão, dono da moto, sem sequer levar em conta as outras duas perguntas.

- Estou trabalhando com meu irmão aqui, atendendo as mulheres. Mas se você sugerir algo melhor...

- que é isso mulher?

- to falando sério, vou ficar por aqui sempre?

- ela quer money fácil Carlos, interrompeu a amiga espetaculosa.

- olha só você insinuando que sou uma...

- vixi! Heim você vai ficar por aqui? Perguntou o cabeleireiro à sua irmã.

- não vou sair, só volto à noite.

- mas não vai trabalhar hoje?

- tem algum horário agendado para alguém ai, pra que eu possa atender?

- ainda não.

Ao sair daquele lugar, depois de haver pago bem barato pelo serviço, não sei por qual razão me sentia perseguido por aquela gente. Apressei meus passos como se alguém estivesse próximo de golpear minha cabeça. Não olhava para trás, apenas caminhava mais ou menos aflito, preparado para virar um golpe violento caso me tocassem. Cheguei até a escada que dava para minha casa, subi até a metade dela, parei no intervalo onde ela fazia a curva, e olhei na direção da barbearia, mas nada. Não havia ninguém na porta, somente a moto solitária. Provavelmente os assuntos ambiciosos continuaram com mais força em minha ausência. Era fácil para aquela gente esquecer-se de trabalhar. Pareciam pessoas mais gananciosas que milionários disputando entre si lucro e poder. Aqueles assuntos que tratavam entre si na barbearia eram muito parecidos com os de pessoas abastadas que conversam inofensivamente sobre futilidades em que gastaram muito dinheiro. Naquele ambiente, entretanto, falava-se sobre o que se faria caso tivessem dinheiro. A comunicação vinha em forma de um desejo a ser realizado a qualquer custo. Não eram ladrões, nem criminosos, mas, me parecia, havia certa disposição para a desonestidade muito contida neles. Era visível uma inexplicável revolta irracional em seus rostos, revoltas sentimentais do tipo: Por que os outros têm mais dinheiro do que eu?Por que tem uma vida melhor que a minha? Se pudessem perguntar a Marx, provavelmente teriam uma resposta solene e dita com euforia: é a ditadura do burguês, do capitalista, que esmaga você! Uma revolta por viver na pobreza, por não ser esperto o suficiente para se dar bem, para ganhar muito dinheiro. Havia um vazio que assombrava de maneira funesta e perigosa aquelas vidas mal tratadas. Mas tudo isso é apenas meu ponto de vista, desde a minha vida e das condições em que vivi. E o ponto de vista de cada uma daquelas pessoas?