Saudosa Infância com Cícero

Hoje recebi a triste noticia da morte de Cícero.

Quando crianças, Cícero e eu brincávamos soltos pelas ruas do Areão entretidos com as pipas, figurinhas, os campos de futebol e as bolinhas de gude.

Luisa filha do Seu João do bar, Leila e eu subíamos pela Padre Fisher e passávamos na casa de Cícero todas as manhãs para irmos à escolinha do SESI 86 na Vila das Graças. A gente voltava sempre juntos pelo Bar triângulo e, quando ele não almoçava comigo, era eu que comia lá. Cícero era meu melhor amigo.

Uma certa manhã quando eu acordei mamãe me disse: - A família de Cícero vai se mudar hoje. Não acreditei. A tristeza me desolou. Irei ficar sem o amigo de todas as horas e de todas as coisas. Cícero então nem se fala, era uma tristeza só. Como é que a agente não sabia disso?

No fim da tarde, na hora da mudança eu já não vi mais Cícero. De longe eu olhava aquela grande agitação em sua casa, alguns homens carregando coisas para dentro de um velho caminhão. Era verdade mesmo, Cícero iria embora. Aliás, ele já tinha ido para a nova casa um pouco antes do almoço, com a irmã e sua mãe e eu ainda estava vindo da escola. Cícero faltou nesse dia. Triste desencontro.

Quase à noitinha, o caminhão de mudança já ia saindo de vagar em uma tristeza lenta. Seu Pedro pai de Cícero me acenava com as mãos dando-me um adeus sem palavras e eu, sem coragem de me despedir tamanha era a tristeza.

Depois disso foram se trinta anos. Soube que os pais de Cícero já não eram mais vivos. Soube também que Cícero havia se casado e em seguida separou-se da esposa e que não tiveram filhos. Certa vez eu vi Cícero junto às barracas do Mercado Municipal de Taubaté. Sim era Cícero, um pouco mais gordo e com o rosto mais calejado mas, sim, era ele. Para minha surpresa e tristeza Cícero parecia embriagado e maltrapilho, aparentemente morando nas ruas. O que se passou na vida de Cícero? Porque havia chegado nessa situação? O que estaria fazendo para sobreviver? Eu estava passando de ônibus pela rua cheia e bem movimentada e não pude parar, foi tudo muito rápido. Talvez devesse ter parado um pouco e ir ao encontro do meu saudoso amigo de infância, lhe dirigir algumas palavras de amparo, mas a oportunidade passou e eu não mais o vi e, dessa vez, nunca mais. Confesso que fiquei deprimido e me senti mal por vários dias, até as ocupações da vida me fazerem esquecer esse triste episódio, com certo remorso pela fria distância que o tempo já havia colocado entre nós. Afinal, a vida havia passado.

Hoje recebi a triste notícia da morte de Cícero. A noite, em meu quarto, uma breve reflexão e um pranto doído. Filosofando sobre a morte, parece que também morri um pouco, como se filosofar fosse a arte de aprender a morrer. Chorei a morte de Cícero e da nossa feliz e saudosa infância.

Geraldo Faria
Enviado por Geraldo Faria em 28/07/2012
Reeditado em 23/07/2022
Código do texto: T3802152
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