Vida que Segue

VIDA QUE SEGUE

Quer saber o endereço do inferno? Fica na Rua Paraíso, numero 27. Rua Paraíso! Percebe o senso de humor doentio da vida? Paraíso, 27. É lá que eu moro. Minha prisão domiciliar.

Faz dois anos que estou preso aqui. Alcatraz, Carandiru e todos esses presídios de cinema não se comparam com essa minha prisão.

O que aconteceu foi o seguinte: há dois anos sofri um acidente de moto. Fiquei em coma, entre a vida e a morte. Passei o ano seguinte vegetando numa cama, mexendo apenas os olhos. Agora já consigo ficar sentado, mas sem mover voluntariamente um músculo sequer. Não consigo falar, nem responder ao menor estimulo. Estou preso a um corpo que não funciona.

No começo meus amigos vinham me ver quase todos os dias. Mesmo sem eu poder esboçar a menor reação, eles vinham, sentavam do lado da cama e conversavam comigo. Em dia de jogos do Verdão, o pessoal vinha ver o jogo aqui comigo. Hoje nem mesmo meus irmãos conversam comigo mais. Eles passam e às vezes nem me notam. Virei uma espécie de samambaia. Mas acho que não posso culpá-los. Se fosse outra pessoa no meu lugar, acho que faria a mesma coisa. Deve ser difícil pra eles me verem nesta situação. Mas sabe que até prefiro que seja assim. Não suporto quando alguém vem me ver e fica com aquela cara de “ai coitadinho”. Ou quando vem com aquele discursinho manjado de “o que importa é que você está vivo”. Queria ver se fosse você aqui no meu lugar. É fácil ser filósofo quando é o outro que está fodido.

Sabe uma coisa que sinto muito a falta? Ouvir meus discos dos Beatles. Ultimamente tenho sido torturado sistematicamente pela empregada, que quando vem limpar meu quarto, liga o aparelho de som numa destas rádios populares que só tocam pagode e música sertaneja. Outro dia fiquei com vontade de matar a desgraçada. Foi embora e deixou o som ligado. Demorou umas cinco horas pra minha mãe entrar no quarto. Já estava tendo uma overdose de musica ruim.

Minha mãe é a única que me faz companhia agora. Todos os dias depois do almoço ela entra no meu quarto e liga a tv. Ela gosta de assistir um programa de auditório onde uma velha loira explora a desgraça alheia. Acho que chama Conflitos de família ou alguma coisa assim. É nessas horas que eu gostaria de estar morto. Sério. Gostaria de poder me levantar e jogar a tv na parede. E depois ainda tem uma seqüência interminável de novelas. Coitadinha da minha mãe. Acho que ela nem imagina o mal que me faz, me obrigando a assistir essas porcarias com ela.

Mas de todas as pessoas que acabaram me abandonando, a ausência mais sentida, a que mais me dói, com certeza é a Priscila. Acho que não tenho o direito de sentir ódio dela. No começo ela esteve sempre ao meu lado. Todo dia vinha me ver. Lia o jornal pra mim. Ela me olhava, bem no fundo dos olhos, e sei que ela sabia que apesar desta carcaça inútil, era eu quem estava ali. Que eu podia ouvi-la. Que no fundo ainda era a mesma pessoa. Que minha consciência estava intacta.

Já namorávamos há três anos e pretendíamos nos casar no fim do ano. Acho que já fazem uns seis meses que ela não aparece por aqui. A ultima coisa que fiquei sabendo sobre ela me caiu como um soco no estomago. Minha mãe me contou durante o intervalo desse programa que ela me obriga a ver com ela, que a Priscila estava namorando com o Roger, um dos meus melhores amigos. Isso faz um mês mais ou menos. Quando pensava que minha vida não poderia piorar mais, me vem mais essa. Fiquei uma semana com aquele choro sufocado, com um ódio me queimando por dentro, desesperado e impotente. Nunca vou conseguir perdoar o Roger. Nunca, nunca!

Aí um dia minha mãe entrou no meu quarto aos prantos, com uma expressão de dor, como se uma tragédia tivesse acontecido.

- Meu filho, você não imagina o que aconteceu! A Priscila e o Roger sofreram um acidente terrível de carro. Os dois morreram. – e me abraçou num choro sentido, como se quisesse me consolar.

Foi então que aconteceu um pequeno milagre. Depois de dois anos sem conseguir expressar o menor sentimento, quando soube da noticia, os músculos do meu rosto se contraíram, e consegui soltar uma gargalhada.

Besouro Curitiba
Enviado por Besouro Curitiba em 18/07/2012
Reeditado em 18/07/2012
Código do texto: T3784799