O ladrão de cartas

Não desejava nada mais, apenas ler as cartas. Trabalhava ao meu lado, e quando eu me distraía, estava lá, abrindo mais uma. Alertei-o muitas vezes sobre o supervisor que já desconfiava. Mas posso afirmar que suas técnicas para selar as cartas novamente era original. Eficiente. O problema central é que, certa vez, ao passar em frente a saleta, o supervisor viu Euclídes lendo uma delas, quando deveria apenas arquivá-las no escaninho correto. Bastou isto para tornar-se eternamente suspeito. Requisitaram sua presença na diretoria, explicou-se, releu o contrato de trabalho e a cláusula de sigilo e por fim relevaram a sua falta.

Na parte da manhã eu ficava conferindo os selos e os pesos, enquanto Euclídes arquivava. À tarde era o contrário.

No dia em que Euclídes encontrou a carta de Débora para Paulo eu já sabia o que ia acontecer. Saltei da cadeira voando para cima dele. Tentou se esquivar mas não conseguiu, tomei a carta e a tranquei na gaveta. Reclamou o dia inteiro. Jurou que não abriria o envelope. Chorou. Eu disse que não confiava mais. Débora era uma bela mulher e Euclídes apaixonou-se no primeiro instante, ao vê-la entrar na agência com um pacote marrom nas mãos. Raramente nos encontrávamos fora da saleta, mas neste dia, pela Providência talvez, estávamos designados a comutar as encomendas maiores. Bastou um sorriso e alguns segundos de atenção para que meu amigo arquivasse aquele amor no escaninho do seu coração. Não piscou até que a Sra. Débora dobrasse a esquina e desaparecesse. Disse-me ainda aturdido:

- Você viu? Isto é que é mulher!

- Mulher casada – respondi.

- Casada? Como sabe?

- Ora! Não viu o anel?

- Mas é claro que vi, na mão direita. Noiva de fato.

- Deixa-me ver seus óculos – estendi as mãos – você está louco. Mão esquerda, casada.

- Eu tenho certeza que é mão direita, noiva. Vamos ver, ela vai retornar.

- E como sabe que ela retorna?

- Ora, conheço a história, o pai faleceu, a mãe já tem idade avançada. Herdará uma casa no Jardim Botânico. Não mais que dois dias retornará, pois pediram ao advogado que fizesse um inventário…

- O pior é que você lê e não esquece, que memória! Não vai esquecer quando for parar na rua. Eu já disse, é casada. O que há nas cartas sobre isso?

- Um tal de Paulo… não lembro o sobrenome. Não sei muito sobre ele. Duas cartas apenas. Ele enviou, ela respondeu. E este pacote de hoje. Porque ela enviaria um pacote a ele? São noivos, tudo bem, mas por que este pacote? Que tem nele? – abriu a porta da saleta das encomendas.

- Euclídes, vem o supervisor!

Andrade passou pelo corredor e nos cumprimentou. Euclídes largou a maçaneta dois segundos antes e voltou para perto das encomendas ainda não comutadas. Cada saleta representava uma área específica da cidade, devíamos colocar cada pacote no lugar certo. Mas Euclídes ainda estava curioso. Fez um pedido tocando-me os ombros.

- Eu vou entrar na saleta, se o supervisor aparecer você me dá um sinal?

- Está louco mesmo. Volte!

Euclídes abriu a porta da saleta, procurou, arrastou, afastou e encontrou numa prateleira a encomenda da Sra Débora. Com suas habilidades descolou os selos, rompeu um lacre e abriu. E para o desespero do meu amigo, havia na caixa um quantidade enorme de convites de casamento. Brancos, com laços vermelhos, escrita dourada, uma verdadeira obra de arte. Entrei na saleta e olhei pra dentro do pacote.

- Que pena. Você estava certo, é noiva. – sorri.

- Meu Deus! Ela vai se casar! O que eu faço? – olhou para mim com um dos convites nas mãos.

- Que fazer? Esqueça.

Euclídes ficou deprimido por uns quinze dias. Quando a Sra Débora entrou na agência para assinar a papelada e receber o envelope do advogado não sabemos. Passamos todos esses dias na mesma função. Carimba, pesa, arquiva… Meu amigo não abriu uma carta sequer nestes dias, por isso percebi que aquela paixão era verdadeira. Sentamos para almoçar, peguei um café, e resolvi perguntar

- Ainda pensando nela? Esqueça. Você a viu uma única vez!

- Não posso simplesmente esquecer. Sei de parte da vida desta mulher! Não sabia que era tão bela até reconhecê-la, quando assinou o nome para deixar a caixa dos convites. Você bem sabe que conheço sua letra, sua assinatura. Mas não sabia que era tão bela…

- Euclídes, você está apaixonado pelas cartas! Não pela mulher!

- Bobagem, pelas cartas se conhece muito melhor as pessoas. Elas não tem vergonha, escrevem o que querem, sem pensar muito. Não precisam olhar nos olhos. Débora é uma grande mulher, eu a conheço! Perderei uma grande mulher! Suas cartas são sinceras, belas, um coração de ouro.

- Bom, meu conselho, esqueça.

Voltamos ao trabalho. Lá pelas três da tarde chegou mais um carregamento de cartas. Derramaram os envelopes na caçamba e começamos a classificá-los. De repente Euclídes saiu correndo com uma carta nas mãos e trancou-se no banheiro. Alguns minutos depois voltou com um olhar de irritação.

- Olhe! Veja você mesmo! – entregou-me a carta.

Comecei a ler. Ao final, Sra Débora assinava, com marcas de beijo e corações adornados.

- Casa e vai morar na europa. Digo mais uma vez, esqueça.

- Está certo, está certo. Como posso competir? Me parece que este Paulo tem fortuna. Um negócio de vinhos.

- Tudo bem… vamos voltar ao trabalho. Quem sabe o destino desta Sra Débora não é estar com o Sr. Paulo? Vamos, levante esta cabeça…

- Vamos.

Alguns dias depois Euclídes estava melhor. Soube disto quando abriu uma carta do Sr Ronaldo, o juíz. Despedia-se parece. Vai morar no sul. Grande homem.

Eu pretendia fazer com que meu amigo deixasse o vício, mas não nego que também me interessava em saber dos pormenores da cidade. Um mero apego ao emprego, talvez, ainda me fazia brigar com ele. Eu não tinha família para sustentar. Euclídies tinha a mãe, uma senhora muito lúcida mas que não podia caminhar sem apoiar-se em alguma coisa. Comprei uma bengala e a dei de presente no natal. Adorou. Beijou-me nas bochechas. Acho que por isso eu tentava proteger Euclídes de uma demissão. Quem ia sustentar Dona Aurora?

Lembro-me de uma vez, quando abriu uma carta da Sra Salete, dona do Hotel, que se correspondia com o dono da Farmácia, Seu Otávio. O mais curioso era que a Farmácia ficava quase ao lado do Hotel. D. Salete era uma viúva e Otávio um solteirão. Mas preferiam as cartas. Encontravam-se por elas. E Euclídes ficava lendo e relendo, imaginando D. Salete descendo as escadarias do hotel, num dia incomum, chegando à farmácia e declarando-se a Otávio. Na verdade meu amigo temia isto. Simplesmente porque não haveria mais cartas, nem romances, nem intrigas, nem suspense.

Euclídes vivia naquele mundo. Acompanhava as novelas e as personagens da cidade. Confesso que algumas cartas eram levadas. Algumas sumiam. Eu imagino Dona Aurora batendo na porta do quarto, querendo entrar, enquanto meu amigo, num salto, escondia as cartas embaixo do colchão. Imagino a tensão, a sensação de desespero e angústia quando o quarto devia ser arrumado. Cartas dentro do baú, nas estantes, atrás dos livros, no armário, entre as roupas.

Voltamos para agência numa tarde, depois de fazer um trabalho externo, carregando um caminhão. Naquele instante desembarcavam mais cartas. Entramos na sala da comutação e arquivamento. Aquela sala era a nossa interseção, ali eu tinha um pouco do mundo do Euclídes, e ele tinha um pouco do meu. A canaleta abriu e os envelopes foram despejados. Rapidamente começamos a classificação… aqui, ali, carimbo, peso. Até que Euclídes sorriu.

- Que foi? – parei por um instante.

- É divorciada.

- Quem? – franzi a testa.

- Sra Débora, Paulo a deixou.

- Mas…

Guilherme Pedrosa Lima
Enviado por Guilherme Pedrosa Lima em 12/07/2012
Reeditado em 12/07/2012
Código do texto: T3773942
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