O Velório
Aconteceu na sexta-feira da paixão. Josué tinha saído da igreja e sozinho estava indo para casa quando resolveu fazer um caminho diferente daquele a que estava costumado.
Subindo uma ruazinha de chão batido, viu uma casa com a porta aberta e da porta se via a Tereza, sentada numa cadeira de palha, com olheiras muito profundas. Aquela visão lhe pareceu um velório.
Foi até lá e assustado constatou que o velório era da própria Tereza, mas ela estava viva, sentada ao lado de seu futuro caixão, olhando para fora da porta.
Josué entrou.
Verificou que ao contrário de fora, dentro da casa estava morno, morto. Junto à parede tinha um sofá de dois lugares, puído pelo uso, com três pessoas espremidas sentadas, desfiando o rosário sem proferir uma oração sequer. Ao lado do sofá, mais duas cadeiras de palha com duas mulheres velhas sentadas olhando para Tereza como quem já tinham visto tudo. Todas as mulheres vestiam roupas escuras, velhas e surradas. Josué não conheceu ninguém e sobrou apenas que as cumprimentassem com um aceno de cabeça.
Em seguida olhou para Tereza. A sua Tereza. Não a amava mais, era certo. Tinha-se casado com outra e ela também tinha a sua família.
Ficaram se olhando nos olhos por muito tempo, tempo que Josué não pôde precisar, pois não conseguia se livrar daqueles olhos tão seus. Voltava todo aquele tempo em que ficavam se olhando e as palavras não ditas eram postas afora aos borbotões através dos olhos. Eles se amavam. Naquele outro tempo, e agora também, durante o velório.
Olhou para trás e as mulheres tinham as cabeças baixas, como a saber que não podiam olhar para tão sagrado momento e então, tocou com dois dedos de sua mão direita, um maço de cabelos da Tereza. Lembrou-se de quando mexia nos cabelos dela e não foi capaz de lembrar porque parou de fazê-lo.
Foi se abaixando, sem deixar de olhar aqueles olhos profundos, ansiando tocar a boca que tanto amou. Deixou os cabelos escaparem dos dedos e roçou-lhe os lábios de 30 anos atrás. O amor ainda estava ali e custava a crer que o havia deixado. Há quanto tempo?
Lembrou que ansiava ferozmente que Tereza lhe chamasse naquele tempo em que ela vivia chamando-o. E quis desesperadamente que ela lhe chamasse agora, de novo, para voltar para ela. Mesmo que fosse durante o velório.
Ouvia a respiração pesada e silenciosa das mulheres, mas sequer ousou se virar, para não perder o momento daquele instante em que toda a sua vida se resumiu. Tinha nascido ali, olhando para ela. Tinha conhecido o verdadeiro amor ali, tocando os cabelos dela. Tinha vivido a vida inteirinha ali, roçando os lábios dela.
Então aconteceu que o ar tornou-se irrespirável quando ela abriu a boca e disse: “Quer que lhe faça suco?”.
Sim. Queria suco.
Acompanhou Tereza até a cozinha, ela encheu o copo com suco de laranja do céu, entregou a Josué e saiu. Foi sentar-se em sua cadeira na porta, olhando para algum lugar e para nada ao mesmo tempo.
Josué despediu-se para sempre de Tereza e deixou ali com ela toda a vida que havia vivido naquele momento e tudo o que deixara de viver se tivesse vivido com ela.
Provavelmente Teresa morreu. Pois todas as vezes que Josué passava em frente à casa do velório, havia uma tranca enferrujada, como se lá estivesse a muitos anos, talvez tantos anos quantos ficaram enterrados aqueles momentos em que viveu velando o passado vivo, mas nunca, nunca mesmo, Josué deixou de passar pela casa do velório pois sempre tinha a impressão de que iria encontrar a Teresa sentada na porta da casa, ao lado do caixão, olhando para ele.