Memórias de um Preguiçoso

Não sei por que cargas d’águas eu resolvi escrever minhas memórias. Não gosto de escrever, sempre achei uma tarefa extenuante e enfadonha, aprecio mesmo é a leitura, se possível, deitado numa rede, em baixo de uma refrescante sombra. Só sei que essa ideia vem me consumindo há meses, martelando minha cabeça, me tirando o pouco sono que tenho durante a noite, - durmo mesmo é durante o dia. Talvez seja pelo fato que faço oitenta anos esse mês. Não sei, não tenho certeza se é isso o que me motiva. Não estou mal de saúde, ao contrário, minha saúde é de ferro. Tirando as dores inerentes à velhice eu não tenho problema algum. Nenhuma doença me corrói as entranhas e sinto que a iniludível, como disse o Bandeira, ainda demorará a me visitar. Essa boa saúde dos dias atuais não se assemelha, em nada, com minha infância adoecida, que é uma das culpadas por eu virar esse preguiçoso, esse indolente incorrigível. Sou filho único, - depois de me ter, mamãe foi obrigada a retirar seu útero -, numa época que tradicionalmente as famílias tinham uma grande prole, sobretudo, as famílias mais abastadas, que era o caso da minha. As recorrentes doenças da meninice, o zelo extremoso de mamãe e toda a fortuna de papai, transformaram-me num ocioso de carteirinha. Minha personalidade bonachona também contribuiu com essa mandriice descarada. Mesmo não sabendo qual o verdadeiro motivo desta viajem ao passado, e desconfiando o quão fatigante isso poderá ser, resolvi me aventurar. Vou tentar aqui rememorar minha trajetória, contar minha história, com o máximo de fidelidade possível, cavando e fuçando lembranças tão antigas, que parecem imemoriais. Será uma longa narrativa, contudo, feita sem nenhuma pressa, nunca tive pressa durante minha juventude e não será agora, na minha velhice, que a terei. No entanto, não se fiem por completo na memória de um velho. Apesar da minha higidez, fique você sabendo que as recordações de um ancião diminuem na proporção que as dores aumentam e mostram suas garras, nos deixando, a nós idosos, muito doloridos, esquecidos e pouco confiáveis aos fatos do passado.

Eu vim à luz no ano de 1932, iluminado pelo sol escaldante do sertão sergipano, dois anos após o golpe de estado do caudilho Getúlio Vargas, quando Sergipe era governado pelo interventor federal o tenente Augusto Maynard Gomes. Saí de dentro de minha mãe exatamente às treze horas e quinze minutos do décimo quinto dia do mês de Sant’ana. Fui recepcionado pelas mãos habilidosas de dona Severina, parteira renomada, no leito dos meus pais, na casa grande da nossa fazenda Maravilha. Nossa fazenda ficava num povoado do município de Matondo, numa região entre Poço Redondo e Canindé do São Francisco. Nasci um meninão vermelho, pesando quase quatro quilos e com cara de bezerro chorão. Mamãe dizia que eu passei quinze dias pra abrir meus olhos, “parecia um cachorrinho manhoso”, ela não cansava de me dizer. Mamãe era uma altiva dona de casa, elegante, culta e que cheirava a musse de maracujá, sua sobremesa predileta. Lembro-me dela indo de um lugar ao outro, disfarçando seu desespero, esforçando-se para que nada saísse errado nos jantares que papai oferecia no casarão. Sua desenvoltura como anfitriã impressionava os convidados. Eu ficava espionando da cozinha, - lugar da casa onde eu mais perambulava -, observando fascinado o farfalhar dos vestidos das belas senhoras, misturado aos sorrisos altos e os falatórios esganiçados, que formavam um burburinho ininteligível. Em outro canto, o oposto acontecia, a fala mansa e pausada, quase inaudível, dos homens, todos de ternos negros, conversando sobre política. A fumaça azulada que saia dos charutos, enevoando o ambiente que os cavalheiros ocupavam, aliada a conversa baixa que eles mantinham, quase ao pé do ouvido, dava ao lugar um ar conspiratório, levando-me a lembrar das leituras que minha mãe me fazia dos livros de sir Arthur Conan Doyle, antes de eu dormir. Eu ficava por ali espreitando, não por muito tempo, devo confessar que logo me enfadava, então, corria para o colo aconchegante e farto de Berenice, a Berê, minha ama de leite. Mamei naquelas tetas até quase os dez anos, menos por fome e mais por sem-vergonhice. Apesar da minha gulodice e aparente saúde, as bactérias e os vírus pareciam ter atração por mim, em especial os vírus, esses, tinham predileção, diria mesmo, verdadeira adoração a minha pessoa. Do nascimento até os meus dez anos de idade fui acometido por incontáveis doenças. Sarampo, catapora, papeira, rubéola, estomatites, dificuldades respiratórias de todos os tipos, crupe, gripe, gripes e mais gripes, entre tantas outras patologias que não recordo no momento. Isso me levou a constantes períodos de convalescência, acamado, sendo paparicado por mamãe e pelas criadas. Não podia ir ao colégio, então, o colégio veio a mim. Papai pagou dois professores, preceptores, que me visitavam todos os dias durante quatro horas ininterruptas. Desta forma comecei meus estudos, dentro da aconchegante proteção do Lar, sem precisar sair da fazenda e ir à cidade, só de pensar em fazer a tal viajem, - cerca de seis quilômetros, percorridos á cavalo -, eu ficava indisposto. Depois que fiz dez anos passei quase um ano e meio sem nenhuma enfermidade, me sentia forte, animado, quer dizer, não tão animado para acompanhar o meu pai na lida da fazenda ou ao seu escritório de advocacia na cidade, muito menos ir ao colégio. Gostava mesmo era de ficar na cozinha, embaixo da mesa, bisbilhotando o que havia por baixo das saias das mulheres que trabalhavam por lá. Até que num belo dia fui contaminado pelo vírus Epstein-barr, presente na saliva de Ritinha. A mononucleose, conhecida como “a doença do beijo”, me deixou enfermo por quinze dias, já a paixão por Ritinha me dá febre até hoje. Ritinha, a filha mais moça de Berê, dois anos mais velha que eu, foi o meu primeiro amor e também minha primeira grande decepção amorosa. Recordo-me de um dia, no galpão que meu pai armazenava o cilo, numa tarde de um domingo preguiçoso, quando ela me ofereceu seus lábios, e eu os aceitei com o fervor trêmulo dos febrilmente perdidos de paixão. Seus lábios eram doces, mas, sua personalidade era cruel. Neste mesmo dia ela me decepcionou pela primeira vez. Sem nenhuma cerimônia, logo após nosso beijo, ela me pediu para eu baixar a minha calça, “quero ver seu pinto” ela disse. Fiquei sem entender e o pejo ruborizou minhas faces. Ela insistiu e eu anuí. Baixei as calças, e quando ela viu o meu membro começou a rir de gargalhar, “Ah é tão pequenininho, o do João é muito maior e tem um monte de cabelo, o seu é carequinha”, zombou ela de mim. João era o filho do capataz, ele era mais velho que eu muitos anos, eu não gostava dele e depois que ela me disse aquilo, minha aversão piorou bastante. Eu era um impúbere de menos de doze anos, não tinha realmente nenhum pentelho ainda, e meu “peru” era ainda um filhote. A zombaria doeu muito, porém, o que mais machucou foi saber que ela já tinha visto os pintos de outros meninos, isso me deixou inconsolável. Ah Ritinha como me magoastes durante toda essa vida. Esse dia mexeu tanto comigo, que criei, durante todos esses anos, uma vasta cabeleira cá embaixo, nunca aparada, e tratada com xampus de qualidade. Hoje está tudo branco e escasso, não lembrando em nada a bela melena de outrora.

Mas estou me adiantando ao falar de acontecimentos da minha pré-adolescência, voltemos alguns anos, voltemos às festas que meu pai proporcionava aos seus amigos políticos, durante a minha primeira infância. Um destes regabofes que eu tenho especial recordação, aconteceu poucos dias depois do meu sexto aniversário de vida. O filho de Canhoba, Eronildes Ferreira de Carvalho, era o governador do estado, e o Brasil vivia o ditatorial Estado Novo de Getúlio Vargas. Estávamos em vinte sete de julho de 1938, e minha casa estava abarrotada de autoridades locais e até mesmo da capital Aracaju. A animação esperada dos convidados da festa tornou-se tensão pela presença de volantes nas imediações da fazenda a procura do famoso cangaceiro Virgulino Ferreira, vulgo Lampião. Também corria um boato de que o Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes, e sua Coluna rondavam o nosso estado. Eu via e ouvia tudo, da porta da cozinha, sem entender muito bem aquele reboliço todo. Mamãe, nesse dia, estava muito preocupada, com uma expressão dura, num misto de tristeza e aflição, todavia, eu não tinha a mínima ideia do que aquilo prenunciava. Ao acordar no outro dia, 28 de julho de 1938, encontrei um verdadeiro pandemônio acontecendo na propriedade. Era um corre-corre, um entra e sai e um disse me disse sem tamanho. Encontrei mamãe chorando sentada na sala sendo consolada por Berê e papai. No entanto ela estava inconsolável, berrava e gritava impropérios, “Aquele filho de uma égua” “filho de rameira” “Filho de uma quenga desgraçada”, nomes que eu nunca pensei que pudesse sair da distinta senhora que sempre foi minha mãe. Foi então que eu soube que na madrugada daquele dia tinham matado Lampião, e também meu avô. A ira de mamãe era para o Virgulino, a quem ela odiava, e o pranto triste por seu pai, meu avô, que fazia parte do bando de Lampião. O bando do sujeito foi emboscado numa gruta localizada na Fazenda Angico, no município de Poço Redondo, a pouco mais de dez quilômetros da sede da Maravilha onde morávamos. Meu avô materno José Bravo era o conhecido e temido “Alicate Afiado”, por sua mania de arrancar os dentes da frente de suas vítimas, principalmente policiais, com um boticão de dentista. Por falar em meu avô, só agora me veio à cabeça que eu ainda não tinha me apresentado, meu nome é José Bravo Neto, tenho o mesmo nome de meu avô cangaceiro. Meu avô tinha entrando para o bando do capitão Lampião há dez anos, dois anos antes de mamãe casar com papai. Lembro-me de três coisas em relação a vovô: O seu bigodão, o seu cheiro horrível de bicho fedorento, e de seu punhal. Essa faca tinha uma lâmina de quase oitenta centímetros de comprimento, que era enfiado, com um golpe potente e preciso, na “saboneteira” da vítima, - saboneteira é a região da base da clavícula -, trespassando órgãos vitais, e quando retirada o sangue jorrava espetacularmente. Eles faziam do assassinato de delatores e volantes um verdadeiro ritual macabro. Mamãe ficou abalada por muito tempo, contudo, o mais incomodado foi papai. Ele não admitia terem matado seu sogro. Ele sendo um homem com tanta influência e poder, deveria ser mais respeitado, afinal, todos sabiam, inclusive a tropa de volantes, que “Alicate Afiado” era pai de sua mulher, eles deveriam ter poupado a vida de seu sogro em sua consideração, assim ele pensava, e se martirizou por muitos anos.

Papai era um advogado conceituado, honesto, trabalhador, herdeiro de um império rural, e um falso moralista descarado. Vivia impondo a moral e os bons costumes dentro de casa, entretanto, passava as tardes no bordel de Dona Fininha. Ele era um mulherengo incurável. Tenho boas histórias sobre suas tardes neste lupanar sertanejo. Mas vão ficar para depois, pois fiquei muito agastado e cansado com tanto falatório. Vou dispensar meu bisneto Bravinho por agora, - é ele que está escrevendo isso aqui em seu notebook -, eu apenas estou ditando, vocês não acharam que eu me desgastaria desta maneira, escrevendo esse monte de palavras, acharam? Pois bem, está na hora do meu cochilo vespertino, aquele descanso da beleza. Então, até logo, nos encontraremos mais tarde, ou, em outra ocasião, onde continuarei dissertando minhas memórias. Passem muito bem!