Todos Por Uma

TODOS POR UMA

De Igor Wright

São Paulo, uma manhã fria de julho. A inversão térmica caprichou no céu poluído e o trânsito flui com seu caos habitual. Em alguns momentos estarão dentro do mesmo carro quatro grandes amigos que dividem uma ligação ímpar e inóspita: a paternidade da mesma garota, Beatriz.

Ao volante Pedro, 46 anos, um típico paulistano da classe alta que trabalha numa grande empresa criada pela família. Guiando um utilitário importado modelo do ano seguinte. Ele entrou nessa história da maneira mais comum e menos banal: Beatriz é fruto da sua primeira transa. Sim, um simples rito de passagem para um garoto de 16 anos, se tornou uma gravidez inesperada e indesejada. Não que ele não amasse a filha com cada célula do seu corpo. Pelo contrário, ela é a única coisa que ele fez na vida da qual se orgulha. Mas não é exatamente isso que uma família tradicional da elite paulistana sonharia para seu herdeiro, ainda tão jovem e imaturo. Pedro jamais fez nada pra se desviar desses sonhos e propósitos. Sendo assim, sua postura em relação a Beatriz foi bem clara desde o começo: deu nome, pagou pensão, compareceu a quase todos os aniversários e formaturas, mas jamais se portou com um pai de fato e de verdade para a filha. Na adolescência dela então, pareciam dois grandes amigos (da mesma faixa etária, psicologicamente falando), que compartilhavam o mesmo gosto por filmes, música, esporte e festas. Esse é Pedro: o herdeiro de uma família rica, pai por ocasião, amigo por vocação. Um cara que viu na filha a oportunidade de ver os sonhos que teve para si mesmo, realizados nela.

- Desse jeito a gente não vai chegar nunca, a 23 de Maio de manhã é osso, mas hoje está impraticável! Por que a Bia quis isso de manhã?!! E numa igreja tão isolada quanto a Nossa Senhora Auxiliadora!!! Eu como pai já devia estar lá. Devíamos ter pego o helicóptero da empresa. Já estaríamos lá.

Rafael interrompe:

- Ah, claro!!! O seu piloto ia pousar um helicóptero na casa de cada um de nós 3 com a maior facilidade. Imagina só o bairro da Saúde todo vindo ver um helicóptero na minha varanda. E o estrago que ele poderia fazer na rede elétrica. Eu ia virar a mega celebridade da zona sul. Acorda Pedro!!! Se queremos chegar lá juntos, tinha que ser assim. E relaxa, que temos tempo e essas coisas nunca começam na hora. A arrumação, maquiagem, vestuário...leva tempo! Vamos chegar juntos e com boa folga.

Esse é Rafael: 47 anos, professor de natação, cheio de energia, a responsabilidade em pessoa.. A primeira figura paterna real que Beatriz teve. Rafael foi noivo da mãe de Beatriz durante os 4 primeiros anos de vida de Bia, sendo que 2 deles foram vividos sob o mesmo teto. Rafael sempre foi um grande amigo da mãe de Beatriz e, quando o amigo Pedro deixou bem claro que ia assumir a filha mas não se casaria com a mãe, Rafael viu uma brecha para realizar vários sonhos incomuns a um garoto de 17 anos: ter casa, esposa e, principalmente, ter uma filha linda. Rafael foi então o segundo pai que Bia teve. Superprotetor e responsável. Ele a apoiou nos primeiros passinhos, a levou no primeiro dia na escola, e lhe apresentou o mar. Quando cansou de esperar por um sim para seu pedido de casamento feito à mãe de Bia, a maior tristeza não foi sair do lar, ou deixar a noiva. O que partiu seu coração foi ver a sua menina na janela, lhe dando adeus com as mãozinhas gordinhas de uma garotinha de 4 anos.

- Rafa! Liga pro Edu e manda ele ir descendo. Aqui na Liberdade não dá pra achar estacionamento uma hora dessas da manhã. Diz que eu vou pegá-lo na porta da casa dele. E pede pra ele trazer alguma guloseima. Deve ter alguma coisa pronta pra comer na casa de um dono de restaurante japonês.

Passam-se 5 minutos e Pedro para o carro em frente a uma casa típica do bairro japonês. As luminárias ainda estão acesas mesmo sendo dia. Eduardo quase não deixa o carro parar e já entra no banco atrás de Rafael.

- Tá aqui sua guloseima Pedro. Bala de gengibre!!! Faz bem pra garganta e pra circulação sanguínea. Que palhaçada foi aquela de que deveria ter algo pronto pra comer na minha casa? Eu tenho um restaurante, mas eu não moro nele!!! E a primeira refeição servida lá é o almoço. Inclusive, vocês são meus convidados hoje após o evento. Podemos almoçar juntos e bancar os pais arrasados que ficaram sem a filha.

Pedro e Rafael olham pra Eduardo com indignação, mas ele nem se incomoda. Eduardo é o típico homem centrado, nunca se deixa levar pelos extremos, apesar de possuir uma enorme sensibilidade. Aos 45 anos de idade, descendente de nipo-brasileiros, ele está pronto pra se adaptar a cada diferente situação que a vida traz, sem supervalorizar nada, simplesmente vivendo e aceitando o que vier. Talvez por isso seja dono de um dos restaurantes japoneses mais modernos e, ao mesmo tempo, tradicionais de São Paulo. Ele faz com que o restaurante siga as tendências do crescimento da megalópole, sem perder o requinte que o fez famoso. E, exatamente por saber se adaptar, é que entrou na vida de Beatriz.

Eduardo como grande amigo de Pedro e Rafael, assistiu de camarote todo o desenrolar da vinda de Beatriz ao mundo e seus primeiros anos de vida. Ele sempre a achou sensível demais pra uma criança. Ele a levava a Pinacoteca, ao MASP e outros museus desde os 7 anos de idade e a menina passava horas observando a arte exposta nesses locais. Ela nunca se cansava e no final do passeio sempre dizia que obra mais gostou e o porquê. E as respostas não envolviam conceitos de arte, mas sim o que ela sentia quando as observava. Como quando viu uma escultura de uma mulher nua na Pinacoteca. Bia disse que gostou da escultura porque ela era tão perfeita que a fez se sentir viva.

Eduardo não era apenas o acompanhante de Bia aos museus da cidade de São Paulo. Ele foi marido de sua mãe e terceiro pai de Beatriz. Ele sempre deixou claro pra Beatriz que não queria roubar o lugar de Pedro ou de Rafael na vida dela. Mas ela jamais o fez se sentir menor que qualquer um deles. Ela o chamava de pai e ele se adaptou com perfeição a esse papel, ajudando a filha dos 7 aos 14 anos a desenvolver um incisivo senso crítico e uma disposição para enxergar as fases da vida como um estágios, e não como algo definitivo. Após a separação da mãe de Bia, os passeios culturais se tornaram mais esparsos e muito mais especiais. Bia o ensinou a ver a comida do seu restaurante como arte e teve papel decisivo no sucesso e renome que seu restaurante obteve.

Eduardo diz:

- O Nando vai estar em frente a Galeria do Rock no acesso virado pra Avenida São João. Ele teve que ir à loja para abrí-la, mas uma vendedora vai tomar conta pelo resto do dia. Pedro, por favor, não vai encher o saco dele por conta da roupa hoje. Um cara que tem uma loja de piercings, tatuagens e afins não pode se vestir alinhado demais só pra entrar numa igreja.

Pedro replica:

- Nem pela filha?? Fala sério!!! A mãe da Beatriz podia ter dado um jeitinho no Nando. Está a 10 anos vivendo com o cara e não deu uma melhorada naquele visual dele!!! Pensei que com o casamento o cara ia ficar mais sóbrio, mas não! Ficou mais doidão! A Beatriz tinha que ter pedido a esse quarto pai dela pra vestir um smoking hoje por ela, só pra variar um pouco.

O carro para. Fernando senta atrás de Pedro. Ele tem 48 anos e parece um artista decadente de heavy metal, com cabelo longo e várias tatuagens. Ele é o pai mais presente de Bia. Fernando sempre dedicou o máximo de tempo possível a Beatriz e sua mãe, Laura. Beatriz adorava o estilo “dane-se” de Fernando e como ele era uma pessoa amável e justa ao mesmo tempo. Ela sempre o admirou por ser um cara doce dentro da armadura que era o seu visual e por seu senso de humor incrível. Fernando fazia piada até da morte. Como quando a mãe dele faleceu. Em vez de ficar chorando e sendo consolado por Bia, ele a chamou para um show de stand-up comedy num bar em Moema, logo no dia seguinte. Durante as risadas a cada piada, Bia via lágrimas grossas e em jorro escorrendo dos olhos de Fernando. Essa era a forma que ele tinha de extravasar sem dramatizar, e Bia amava isso nele, pois faziam os próprios problemas dela mais suportáveis. Bia adorava contar sua vida pra Fernando porque ele não fazia disso um mega evento, e sim parte da cumplicidade natural deles. Foi assim com a escolha do curso superior, com a primeira transa, com a primeira viagem de mochileira sozinha e com cada um dos grandes eventos da vida dela nos últimos 10 anos. Fernando ouvia Bia falar sobre suas dores de cabeça e idas ao médico e sempre via algo divertido e engraçado nas situações descritas. Ele nunca tinha um ar paternal de conselheiro, mas sim a postura de amigo-confidente que curte as aventuras da filha adulta.

Rafael diz:

- Quem diria que chegaríamos nesse dia. Os quatro pais...

Pedro passa a mão no cabelo e pergunta:

- Quem vai me acompanhar nos jogos do São Paulo no Morumbi agora?

Fernando diz:

- Vai se ferrar, Pedro!!! A Bia só ia no Panetone com você porque tinha medo de você ser arrastado pela torcida do Timão!

Eduardo ri alto:

- É verdade, ela sempre cuidou de você Pedro! Afinal, você é o único de nós 4 que inspira cuidados!

Todos se entreolham e riem com gosto. O carro para em frente à Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, no bairro do Bom Retiro. Rafael pergunta se todos estão prontos e Eduardo responde com tranquilidade que nenhum pai jamais estará pronto. Fernando toca no ombro de Pedro e fala:

- Vamos conduzir nossa menina.

Eles entram na sacristia e lá está Beatriz: vestido branco, cabelos arrumados, coroa de flores na cabeça, linda como sempre, mãe chorando ao lado. De repente, Pedro começa a chorar, e Eduardo diz:

- Nós somos tão pais dela quanto você. Vamos em frente! Ela queria ser conduzida pelos quatro e assim será.

Cada um se põe em uma extremidade do caixão apoiado por um suporte com rodas e empurram o corpo da filha para seu velório.

EPÍLOGO

São 17 horas. Os quatro pais e a mãe se afastam do jazigo onde sua filha acabou de ser enterrada no Cemitério da Consolação. Pedro tira o paletó e dá um suspiro dizendo: “Estou tão grato hoje que eu chego a acreditar em Deus de tanta gratidão. Quem diria que a minha, desculpa...nossa filha viveria por tanto tempo”. Fernando soltando o rabo de cavalo concorda: “Um aneurisma no cérebro por quase 25 anos, ela foi uma sortuda”. Rafael que estava tirando a gravata se manifesta: “Sortudos fomos nós que passamos a vida toda com medo dela morrer a qualquer segundo e tivemos nossa filha por quase 30 anos. Valeu a pena cada noite no hospital, cada minuto segurando uma bolsa de gêlo naquela cabecinha linda.” Eduardo tira os óculos escuros olha para os outros três e diz: “Quando ela foi diagnosticada com essa doença eu pensei que nem a veria entrar no ginásio, quanto mais se formar em artes plásticas e gastronomia em tão pouco tempo”. Laura para em frente os quatro, os olha com ternura e desabafa: “Mais que gratos ou sortudos, nós somos abençoados por cada segundo que passamos com a Bia. Ela nos ensinou a amar, nos mostrou que a beleza da vida não está só em realizar, mas em aproveitar tudo que está à nossa volta. A arte, a comida, os lugares e, principalmente, as pessoas. Ela jamais se sentiu injustiçada por saber que não viveria uma vida longa, mas aproveitou cada dia da melhor forma possível. Ela amou esses quatro caras não pela figura paterna que eles representavam na vida dela, mas sim pelo que eles realmente são: Um playboy imaturo, filhinho de papai, super divertido e companheiro pra todas as diversões. Um cara responsável, amoroso e sempre pronto a proteger e apoiar quem ama. Um bicho-grilo todo tatuado, com um senso de humor imenso e uma amizade maior ainda. Um cara que deixa o barco da vida seguir, aproveitando o melhor que ela tem em sua arte e beleza. Beatriz nos ensinou a amar o que dá sentido a vida! Ela ensinou até a mim, uma mãe extravagante e volúvel. Nunca me condenou por todas as mudanças de idéia, fosse pra mudar de cor de cabelo ou de marido. Ela me ensinou a me aceitar melhor”. Os cinco chegam ao carro de Pedro e antes de entrarem ele fala: “Aquele almoço japonês pra bancarmos os pais arrasados que ficaram sem a filha tá de pé, né Edu?”. Eduardo diz que o almoço acabou de virar um jantar, pelo horário. Rafael pergunta se eles podem ver o pôr-do-sol no lugar preferido de Beatriz antes do jantar. Fernando se indigna e diz: “Não acredito que vamos ao Parque da Independência e eu estou sem um skate pra andar lá?!!”. Laura sorri e passa os braços ao redor dele afagando suas costas como as de uma criança. Eles entram no carro e seguem para o parque, com a certeza de que tiveram a melhor filha que a vida poderia lhes ter dado e gratos por serem os quatro pais e a mãe dessa menina incrível.

Igor Wright
Enviado por Igor Wright em 10/07/2012
Reeditado em 13/09/2012
Código do texto: T3771290
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