Nada Acontece por Acaso - parte I

Olá me chamo Luisa, moro em sampa, tenho 28 anos. Sou do tipo branquela, alta, magra, cabelos curtos pretos repicados, olhos azuis. Tenho algumas tattoos que chamam atenção. No pulso, uma pulseira que lembra uma trama de macramé muito elaborado, um tribal com uma rosa lilás no coccix, uma delicada correntinha no pescoço e o clássico código de barras no outro pulso.

Naquele dia, usava um lindo vestido cinza, com um decote que me valorizava ainda mais e um delicado casaquinho. Trabalho em um atelier de decoração e arquitetura. Há pouco tempo mudei para um bairro mais longe do meu trampo, isso me fez pegar um ônibus a mais na volta. Ainda não tive oportunidade de comprar um carro. Meu sonho de consumo!!!

Mais um dia cansativo. Muita correria, muito trabalho no atelier, parece que tudo que tinha a fazer era para ontem, urgente, mal tive um STOP para um lanchinho. Estava morrendo de fome, mas decidi que não pararia para comer, iria direto para casa, pois tinha encomendado um risoto de funghi. Quando me preparava para sair do trabalho, Estela minha chefe me chama para uma pequena comemoração: aquele tão aguardado contrato finalmente havia sido fechado, queria comunicar a todos. De fato, ele nos abriria muitas portas e futuramente traria bons clientes. Eu disse que não poderia ficar, pois tinha outro compromisso, na verdade importantíssimo: com minha cama. Estava realmente cansada e sem saco para mais uma daquelas confraternizações caretas com as mesmas pessoas de sempre. Stela minha chefe, se diz ultra subversiva, inovadora e muito criativa; mas que na verdade é careta, moralista e nada mais faz do que reproduzir idéias já batidas. Thiago, um gato fofo, lindo de morrer, bofe escândalo, gosta da mesma fruta que eu; Anita, assistente da Stela, uma “faz tudo”, um doce de pessoa, sempre falando das mesmas coisas: suas receitas gastronômicas, seus gatinhos de quatro patas, sua mãe/seu pai e suas belas plantas, não sai disso. Alex metido a intelectual, amante da sétima arte, do cinema cult, tem todos os lançamentos na ponta da língua, cabelos encaracolados, castanho escuro, barba por fazer, olhos castanhos, magro, sério, interessante, já teve um rolo com Stela e atualmente namora uma loira daquelas que se cair de quatro não levanta mais. Vai entender esses homens...Marcela, secretária, do tipo atraente, há pouco trabalha com a gente, metida a dizer que sabe de tudo um pouco, mas na verdade não sabe nada de coisa alguma, finge bem. Bom, tem muito mais gente, não vou me estender muito nessa parte, vamos ao que realmente interessa.

Fui até a sala ver a tal confraternização, tomei uma taça de vinho, fiz uma rápida social e sai de fininho.

Peguei meu ipod, fone de ouvido e coloquei para tocar o álbum debut da mais nova banda synth inglesa Ou Est Le Swimming Pool. Mais uma banda de promessas rompidas...

Apesar do cansaço e do dia corrido estava agitada, acho que aquela taça de vinho me animou, cada gato que avistava na minha caminhada até o ponto de ônibus, me deixava ainda mais agitada. Sai no horário de costume, peguei o primeiro ônibus, e segui a caminho de minha casa. Não estava muito cheio, mas não pude sentar, tive de ficar de pé. Mas por sorte sem nenhum babaca para me encochar, nenhuma mochila me apertando ou coisas do tipo, comuns no transporte de sampa, principalmente no horário de pico. Foi uma viagem tranqüila, sem trânsito, cheguei logo ao meu primeiro destino.

Faz algum tempo que estou sozinha, sem namorado, ficante, nem mesmo resfriado tenho pego. Por conta de muito trabalho não tenho saído muito, e estou em uma maré meio baixa, mas hoje parece que estou chamando mais a atenção do que de costume. Observo vários olhares em minha direção. Meu segundo ônibus resolveu demorar mais que o habitual, e quando chegou estava cheio, não tinha lugar para sentar. Como sei que ele costuma lotar, passei a catraca e segui para o fundo próximo à porta. Estava com bolsa, mais uma pasta e um casaco na mão, mal podia me segurar. Foi quando me deparei com um ser de outro mundo, uma visão no meio de tantos ogros e tanta gente feia se levantando. Um gato, lindo, super bem vestido, magro, mas bem definido, não muito alto, cabelos castanhos escuros cacheados, nem curto nem muito longo, desarrumados, olhos azuis, pele clara, e um bigode não muito grosso que salientava ainda mais sua boca bem definida; usava fone de ouvido, camisa xadrez de mangas curtas em tons de verde e marron, calça jeans cinza, echarpe no pescoço, óculos aparentemente de grau, na bolsa alguns botons, tipo: I love electro, Presets, Mika, Snow Patrol.

Fiquei até sem ar. Parei bem a seu lado, mas ele prontamente se levantou, me olhou timidamente e disse:

“Pode sentar. Vou descer logo.”

Eu mal consegui ouvir o que ele disse, só o admirava, meu raciocínio não acompanhava, apenas vi que ele fez um sinal e se levantou. Achei que não fosse descer tão logo, que apenas estava sendo gentil, cavaleiro, além de muito gato e estiloso; características difíceis hoje em dia, ainda mais em uma só pessoa.

“Pode ficar. Estou acostumada com esses ônibus, vou na boa em pé”

“Não, não. Eu insisto. Está toda atrapalhada com suas mil bolsas.”

Já que insistia tanto, me sentei. Ele ficou ao meu lado. Perguntei se queria que segurasse sua bolsa, disse que não precisava. Insisti e acabou aceitando.

“Qual seu nome? Legais seus botons, vejo que gosta de música dançante. Adoro Presets, If I Know You foi repeat por um bom tempo no meu ipod.”

“Fred prazer. É, Presets é muito bom, assisti um show deles quando visitei um amigo na Austrália, é um show muito animado, você esquece de tudo na pista, If I Know You é ponto alto do show.” “Disse ele meio sem graça.”

“Meu nome é Luisa.”

Muito tímido, parecia nem saber muito o que dizer, o que lhe dava ainda mais charme. Fiquei um pouco sem graça com tanta timidez do rapaz, mas logo passou. A pessoa que estava sentada a meu lado se levantou e desceu no ponto seguinte. Ele se sentou a meu lado e continuamos em um papo super interessante sobre bandas de que gostávamos. Em um determinado momento perguntei a ele:

“Já ouviu falar em uma banda chamada Ou Est Le Swimming Pool??, São ingleses.”

“Já sim. Uma grande amiga me indicou, mas ainda não ouvi. Uma fatalidade o que aconteceu com o vocalista.”

“É mesmo. Estou ouvindo, escuta, essa é muito boa, se chama: ”Dance the Way I Feel”. Acho que pelo tipo de som que você curte vai gostar bastante.” , “disse eu passando um dos fones para ele.”

Após ouvir parte da música, ele diz:

“Muito bom! Vou procurar mais músicas deles.”

Eu o interrompo e digo sem muito pensar:

“Você vai achar muito clichê o que vou dizer, mas é a mais pura verdade. Nunca imaginei que poderia conhecer alguém assim tão interessante como você em um ônibus. Juro que não planejei nada disso, apenas estava muito precisando que alguém como você: lindo, estiloso e de bom gosto cruzasse meu caminho hoje.

Sempre volto para casa ouvindo música, elas me tiram deste inferno e me transportam para outro mundo: alegre, mágico, onde só tem gente bonita, interessante e que entendem o que eu digo.”

“Olha nem sei o que dizer...valeu pelos elogios. Posso dizer o mesmo. Você é muito bonita Luisa. Mas tenho que dizer que já tive muitos amigos e até namorada que pensavam assim como você…Nem tudo é perfeito!! A gente tem que saber aproveitar o que a vida nos dá e sempre buscar o melhor. Pense nisso. Se você não estivesse neste ônibus aqui hoje, talvez nem fossemos nos conhecer.”

“Ai...não sei não. Tem dias que sinto tão cansada do meu trabalho nada criativo, destes malditos ônibus lotados e da minha vida tão sem graça. Parece que faz séculos que não me acontece nada realmente bom.”

“Que é isso!! Não fale assim. Estamos aqui conversando, nos conhecemos, não parece uma coisa boa? Aposto que não sabe realmente o que é estar cansada de tudo...Não diga isso...” “diz Fred em um tom muito sério e quase às lágrimas”

“Nossa me desculpe...disse alguma coisa de errado? O que foi?”

“Nada...pessoas como você que só sabem reclamar da vida me deprimem. Aposto que você não sabe o que é perder a pessoa mais importante na sua vida de uma hora para outra e ter que seguir em frente. Meu ponto está chegando tenho que ir.”

“Desculpe-me mais uma vez Fred. Me passa teu facebook, tel ou algum contato pra gente conversar mais. Vai ver que não sou tão...Ou melhor desço com você e conversamos mais. Estou vendo que não está bem.”

“Não precisa.” “diz ele me entregando um papel com seu face”

Mesmo depois da enfática negativa do rapaz, vendo que ele está realmente abalado resolvo descer junto. Estávamos próximo à uma padaria, e digo:

“Olha não falei por mal. É que realmente não ando me sentindo muito animada. Desculpe se isso te incomodou tanto.”

“Nossa você realmente não se dá conta das coisas que diz, não é? Meu Deus...e eu ainda estou aqui perdendo tempo e te ouvindo. Bom, você pelo visto não mora por aqui. Pode ir. Até mais.”

“Nossa quanta educação, hein. Vamos tomar um café e comer alguma coisa. Estou congelando e morta de fome. Fiquei curiosa com a sua história.”

“Curiosa com o quê? Não se importa com nada à sua volta mesmo. Para que quer saber?”

“Vamos, deixa dessa. Estou vendo que está abalado. Mal te conheço. Mas não vou te deixar assim sozinho na rua. Ou quer que te acompanhe até em casa?”

Fred reluta mas acaba aceitando o café. Entramos na tal padaria. Muito fina por sinal. Sentamos em uma mesa. Ele pede um capuccino e eu um café com conhaque e uma empada. O rapaz parecia realmente muito abalado. O que não lhe tirava o charme, do contrário.

“Diga o que foi que te deixou assim tão abalado? Seria algo que eu disse?”

“Adiantaria dizer? Você vai mudar? Aposto que não...Minha noiva se foi há uns três meses...Satisfeita!! Uma doença...os médicos não sabem explicar ao certo. Estávamos quase noivos. Éramos cúmplices em tudo. Viajávamos juntos. Ela era uma pessoa maravilhosa. Estudava muito, mas sempre arrumava tempo para os amigos e quem precisasse. Não ela...Não merecia ter partido assim tão cedo...Mas não é por isso que vou andar por aí emburrado e reclamando da vida para a primeira pessoa que encontrar. Não sei porque estou aqui te contando isso, nem te conheço.” “diz Fred as lagrimas”

“Nossa que coisa!! Desculpe mais uma vez. Não, não sei mesmo o que é perder uma pessoa assim tão importante. Mas também não acho que outras perdas sejam menos sentidas e nem menos importantes.”

“Vou fingir que nem ouvi o que disse. E vou nessa. Está tarde e amanhã tenho um compromisso cedo. E você não trabalha? Faculdade? Algo do tipo?”

“Trabalho sim! E cedo. Sou arquiteta. Também vou indo. Desci alguns pontos antes porque fiquei realmente preocupada com você, vi que não estava bem. Me senti culpada. Mas pelo visto já está bem. Até mais.

Ah, se vir uma louca chamada Luisa te adicionando no face, é porque te achei por lá.”

“Ok. Quem sabe te aceito. Até.”

O rapaz era realmente muito gato e um tanto interessante...Mas um tremendo mala. Logo passa um ônibus que me serve. Vejo que ele atravessa a rua e entra em um prédio em uma rua próxima. Pelo jeito morava ali. O bairro me pareceu muito interessante, bons prédios e casas, um comércio pouco mas, muito fino. Ele deveria morar muito bem. Desci do ônibus e passei na rotisserie para pegar o risoto que havia encomendado. Ainda dei uma passadinha no supermercado para pegar um vinho tinto, para acompanhar. A noite estava irritantemente quente e apesar de minha discussão com o tal Fred aquele clima havia me deixado com mais calor. Moro em um ap razoável, longe de ser o que realmente sonho, mas no momento é o que cabe no meu bolso. No caminho até em casa penso: “Ai ai...bem que meu pai poderia ter me “ajudado” a conseguir um ap bem melhor!!! Entrei na faculdade de arquitetura recém saída do colégio e cursei nos cinco anos previstos. Bem que eu merecia, não?? Ele trabalha tanto e para quê? Se nem aproveita o dinheiro que ganha!”

Chegando em casa guardo as compras, ligo uma musiquinha e sigo direto para um refrescante banho. Visto um pijama fresquinho e vou para cozinha. O risoto me parecia muito apetitoso. Abro a garrafa de vinho enquanto esquento o risoto. Não costumo beber mais de uma taça em dia de semana, mas hoje precisava de um pouco mais...

Termino de comer e vou para a sala ver um pouco de teve para me distrair. Não conseguia parar de pensar no que tinha acontecido, na discussão toda e no que o tal Fred disse sobre não me importar com nada a minha volta. E como um rapaz que mal me conhece pode achar que sabe tanto assim sobre mim. Fui dormir pensando: “Se ele não estivesse tão abalado iria ouvir poucas e boas!! Quem é ele para dizer como eu sou ou não sou!!! Nem me conhece. Acho que estava louca quando achei que ele fosse interessante. Na verdade ele não passa de um mala.“. Estava realmente cansada logo pego no sono.