O último São João
A chama da lânguida fogueira refletia nos seus olhos lúgubres. A sua volta, umas poucas pessoas e muito lixo no chão.
Seu olhar parecia mesclar-se à derradeira labareda em busca de algo que nem ele mesmo sabia. Alguns já varriam o chão, enquanto outros recolhiam os detritos.
Ele porém permanecia imóvel, sentado num toco de figueira diante do fogacho. Ao filho, dissera que se precisava aquecer mas, no fundo, queria mesmo era despedir-se. Como se aquela fraca e diminuta fogueira representasse a sua vida: antes, intensa e reluzente; agora, minguada e desvanecida.
Lembrou-se naquele momento de todos os "são joãos" de sua vida e, por um breve momento, se alegrou. "Ah, como é lindo o são joão! Quantos ritmos, quantas cores, quantos aromas, quantos sabores!"
De repente, o filme de sua vida começou a passar diante daquela fogueira. Pode ver, desde de seu primeiro são joão, na roça em Cabrobó, ainda no colo de mãinha, até aquele onde se encontrava, em Campina Grande, aos sessenta e três anos de idade. Percebeu que o "são joão" fora o seu melhor amigo. Estava com ele nos momentos mais importantes de sua vida. Seus primeiros passos se deram num são joão, em Juazeiro, quando tinha treze meses, ao tentar acompanhar a quadrilha que passava. Também foi a primeira gargalhada. "Gracejou a noite toda pulando e fazendo caretinha", dizia sua mãinha.
O primeiro beijo também aconteceu num são joão, desta vez em Petrolina, aos quinze anos. Seu nome era Maria Florinda, a menina mais linda que vira até então. Lembrou-se do vestido de flanela, vermelho e com listras brancas, das meias brancas compridas e do sapatinho de fivela, combinando com o vestido. O cabelo era lindo e loiro, preso em duas chiquinhas encantadoras. Seu sorriso, seu perfume...ah, era como se o tempo voltasse! Pode até sentir novamente o gosto doce e suave de sua boca. Nunca mais a viu e jamais se esquecera dela.
Lembrou-se também do dia em que começou a namorar Dona Antônia, sua esposa. Também foi num são joão em Petrolina. Os dois tinham 17 anos. Dona Antônia não era tão graciosa como Maria Florinda, mas seu jeito de menina-moça o seduziu instantaneamente. Tanto que pediu sua mão no mesmo dia em que se conheceram e não se largaram mais. O casório, acreditem, também foi num são joão, na zona rural de Salgueiro, onde foram morar. O difícil foi convencer o padre que, depois de ouvir a importância dos "são joãos" em sua vida, concordara de pronto.
Trabalhava como vaqueiro e Dona Antônia cuidava dos afazeres da casa. Tiveram dois filhos, Toninho e Miguel, e uma filha, que chamou de Florinda (Dona Antônia nunca imaginou o verdadeiro motivo). E adivinhem onde as crianças foram batizadas? Numa festa de são joão! Com o mesmo padre que os enlaçara em matrimônio, é claro.
Lá, viveram felizes e sossegados por quarenta "são joãos", até Dona Antônia vir a falecer de "mal de púrpura" na época da festa que, nesta altura, já fazia parte da família. Seu corpo foi velado durante a festa, com direito a foguetório, muita música e até quadrilha em volta do ataúde.
Para não ficar sozinho, foi morar com seu filho mais velho, Toninho, em Campina Grande. Não dava muito trabalho ao filho, professor universitário, especializado em Folclore e Crendices Populares, e sua única exigência era que fosse levado todo ano às festas de São João. Isso para o filho não era nenhuma aporrinhação, muito pelo contrário. Além de gostar muito das festas, elas eram como que fonte para suas pesquisas. E aquela era apenas mais uma dessas festas. Não para o velho. Aquela era mais que especial.
_Vamos, papai! Todos já foram embora! E olha: a fogueira até já se apagou...
Trazido de volta pela voz do filho, percebeu, com muito pesar, que a fogueira de sua vida também havia se dissipado.
_Vamos sim, meu filho. Me ajude aqui - murmurou, estendendo os braços para ele.
Chegando a casa, foi direto para o seu quarto e sentou-se na cama, onde havia um envelope com o timbre do Hospital. De frente para o espelho do guarda-roupa, abriu e leu novamente o resultado do exame que fizera no dia anterior. Guardou o envelope na gaveta da escrivaninha e, encarando-se, sob a luz fúnebre do abajur, teve novamente a certeza de que...uma lágrima apertada e fria escorreu pelo seu rosto...de que...
Aquele fora o seu último "São João".