O sol nem piscou o olho direito quanto mais o esquerdo e Dendeco corria a
  vista no descampado, procurando Zeca, o bode.
  __ Zeca dusdiabo... ondé qu'ocê tá seu miserarve?
  Zeca tava no desjejum ( gostaram do desjejum?) deliciando-se com parte da cerca
  de arame farpado do galinheiro de de olho taradão nas galinhas espalhadas pelo
  terreiro.
  __ Zeca, seu canibal. Tira os zóio das galinha, seu traste.
  Tirou. A bem da verdade, pensou, esse bicho de pena deve dar uma cócega brava
  na garganta. Mas um dia papo uma, só pra satisfazer o ego.
  __ Vem cá bichim danado qui é pra mode de nós tomá bâin e botá chero pra i pra
  festa...
  Banho? Cheiro? Esse cara pirou, melou o cabeção. Também com esse sol e o pingão
  retado que ele toma, né de se admirar, não. Banho? Onde já se viu? Ou ele pirou 
  mesmo ou tá se revelando... quem diria, o Dendeco é uma Dondoca. Festa? Até que
  não é má idéia. Toda festa tem comida e bebida e isso é com o degas aqui, Zeca, o
  comedor, quer dizer, no bom sentido... Mas festa onde, nesse sertão miserável, tão
  miserável que nem aqui Judas quiz  perder as botas, onde só político tem dinheiro,
  desviado, é claro, e que emprega a bufunfa nas estranjas ou na capital, nos
  trambiques, nas mordomias, nas corrupções, nas negociatas, esses vendilhões da
  Pátria, que só se lembram deste fim de mundo nas eleições e no resto querem é se
  banhar em cachoeiras... mas festa, aonde, Deus dos Bodes ( sou maçon, não, viu
  gente ). Num tem ninguém casando e isto, aliás, não é motivo pra festa, inda mais
  hoje em dia...num morreu ninguém, nem nasceu, também... não mataram o Rui 
  Agiota, num tamos em campanha de eleição. Gozado é que tem muita gente 
  passando todo empenecado lá pras bandas do rio, onde construíram a ponte...
  a ponte? Mas que bode burro que eu sou, é isso, hoje é a inauguração... só pode
  ser isso. Ma quem diria, a ponte. Político danado de peitudo aquele tal de Lara Pio.
  Lembro-me muito bem do seu discurso de campanha:
  __ Meu querido e sofrido povo ( nesta hora a gente é povo, querido, depois num
  querem nem sentir o cheiro da gente ) se eleito for construo uma ponte neste 
  querido rincão...
  __ Mas, candidato, discurpe, mas nóis num tem nem rio pur aqui...
  __ Poi eu trago o rio também...
  E não é que ele trouxe mesmo! Quando eleito, choveu tanto neste querido rincão
  que os leitos antigos, já secos de tantos anos, voltaram todos  a correr fartoe e
  bem latgos pra passarem, num só sentido, debaixo da futura ponte do Deputado, 
  hoje sendo inaugurada. É, só pode ser isso. A ponte tá pronta, vai ser um festão
  danado, com a presença do Lara Pio, dos puxa sacos, do Prefeito, etc, e do povo
  todo do rincão que vai tirar a barriga da miséria... e por falar em barriga, deixa eu
  cascar fora, que este troço vai começar é cedo e, também, a dondoca que é o 
  Dendeco pode insistir nesse negócio debanho e cheiro e isso não é comigo.
       
      Dendeco, de banho tomado e cheiro botado, acabava de encher a tina, quando
  viu bem longe indo Zeca, o bode.
  __ Zeca... vorta aqui seu fidamãe... a tina tá cheia, cê num vai nesse fedô pra
  festa não, seu...já pensô, sô... todo mundo bem vistido , bem iscovado, as 
  dentadura limpinha da silva e aí chega nóis nesse fedô dus demônos... vorta aqui
  sõ... Zeca, ô Zeeecccaaa.
  Zeca já tinha virado o morro.
  __ Bode têmoso... vô passá vergonha... já tô veno qui vô...
  
       Dondoca, quer dizer, Dendeco, fechou o barraco, ajeitou a roupa domingueira,
  passou a mão pastosa nos cabelos e pé na estrada pra ponte. Ia preocupado com
  o Zeca, bichin danado de cabeça dura qui nem o pai ( é o pai dele, viu gente, o
  Zecão velho, já aposentado e que mora num topo dum monte qualquer ). Dendeco
  remoía-se de preocupação e nem viu que se aproximava do final do trajeto. Só se
  deu conta ao ouvir o som da Furiosa, que atacava o Hino Nacional. Deu uma 
  no ambiente e percbeu todo mundo do rincão. Num faltou nem a Marieta e suas
  meninas, aquelas meninas que fazem a alegria dos machos do lugar. Não viu o 
  Zeca e tranquilizou-se. Devia tá aprontando bem longe. Terminado o Hino e após
  as fracas palmas, de um palanque improvisado vinha a voz enérgica do Deputado,
  lembrando a sua promessa cumprida e se dando por satisfeito com a sua
  realização, convidando o Prefeito e demais autoridades para o tradicional corte da
  fitinha verde e amarela, que cortada estaria entregando a ponte pro seu ofício que
  é o de deixar passar o rio por baixo dela e as pessoas por cima. Entretanto, no
  momento exato em que a tesoura ia cumprir a sua obrigação, Zeca, o bode, saíndo
  não se sabe de onde, prendeu a fita entre os seus esfomeados dentes e
  desembestou-se ponte a dentro. E foi tão rápido que todo mundo ficou imóvel
  e deveras pasmado quando, no meio da ponte, a dita não sustentando o peso do
  Zeca, arriou as duas bandas, caindo o meio no rio e afundando com o bode. Ah,
  foi um corre-corre, um junta-junta, umgrita-grita tão forte que fez com que Dendeco
  pulasse no rio pra tentar salvar Zeca, o bode. Mas ,quem diria, num precisava ser
  salvo. Tava numa boa, boiando de barriga pra cima, terminando de engolir a fitinha
  verde e amarela e deu até um arroto ,tão bem dado ,que São Pedro achou que era
  trovão e mandou chuva. A festa acabou e junto a moral do Deputado, do Prefeito,
  do engenheiro de obras, da empreeteira Lara Pio Jr, etc, etc, etc...

       Resumindo os fatops decorrentes, deu-se o seguinte: O Deputado foi expulso do
  rincão, juntamente com o prefeito e toda a cachorrada. A ponte nunca mais foi
  reconstruída, mas com os restos dela, o povo agradecido ( sempre o povo ) do
  rincão ergueu uma bela estátua pro Zeca, o bode, que continua de olho nas
  penosas, sem tomar banho e desconfiado que o Dendeco é uma dondoca ... 
 
   
  Observação: Do livro O Doido e Outras Maluquices - Robergom
 Edição: 1967