O que os olhos não veem, o coração não sente
Marília e Gustavo se conheceram ainda muito jovens. Ela, filha de mãe italiana com pai alemão, criança linda, cabelos loiros que cresciam à medida de sua idade, olhos bem azuis, pele muito branca e cútis bem rosada. Um encanto de criança, muito exigente já aos seus dez anos de idade. Farda colegial impecavelmente passada, cuidada sempre pela mãe, também bastante vaidosa. Os vestidos havia muitos; os de uso para ficar em casa e os para ir ao culto aos domingos, sempre acompanhada dos pais. Os das festas de aniversários das amigas eram os mais bonitos, com muitos enfeites e bordados, exigência dela. Trazia sempre um laçarote de grandes pontas e vistoso na cabeça. Todos diziam: uma gracinha de menina a filha do casal Manfred, ricos produtores de vinho das serras gaúchas.
Ele, filho de militar em início de carreira, soldo curto, apresentava pouca exigência. Normalmente, dois sapatos, um de obrigatoriedade escolar e outro para os diversos fins. Três ou quatro calças, das quais uma da farda, que poderia ser usada mesmo fora das atividades escolares, uma para os domingos e festas e o restante para qualquer ocasião. Calção tinha aos montes, sempre ganhos de presente de aniversário, ele gostava muito de praticar esportes.
Ambos estudavam na mesma classe, pois tinham igual idade. Ele mais estudioso e inteligente do que ela. Moravam na mesma rua, separados apenas por duas outras casas. A dela mais suntuosa, a dele muito simples, apenas o que o soldo do pai permitia pagar de aluguel. Quase não tinha móveis em sua casa, as mudanças constantes de endereço, pela função do pai, eram as causas.
Gustavo, mesmo com essa diferença social, sempre que possível procurava se acercar de Marília. Na escola, no culto, que passou a frequentar por causa dela, nas festinhas para as quais sempre era convidado, pela sua qualidade de ser também um belo garoto, moreno, cabelos pretos e brilhantes, olhos verdes e expressivos, muito diferente dos branquelos daquela cidade do interior sulista, mediana produtora de vinho. Infelizmente, ela quase não o enxergava. Só o procurava nos períodos das provas escolares, quando precisava de suas explicações sobre assuntos que ela não dominava. Ele não titubeava, estava sempre pronto para atendê-la. Dizia para si mesmo que isso contava ponto nesse relacionamento unilateral.
Assim, os dois chegaram à adolescência. Mais amigos, mas apenas amigos. O pai de Gustavo, com a nova promoção, já circulava na sociedade local com desenvoltura, proporcionando outros ambientes de frequência para o filho. As garotas da localidade disputavam a companhia daquele charmoso rapaz. Porém, ele só tinha olhos para Marília, e até jurou que um dia se casaria com ela, que a cada dia se tornava mais bela, rosto perfeito, uma pintura, obra-prima, como ele dizia.
Aos dezessete anos, depois de ser dispensado do exército, pois pretendia ser médico, Gustavo foi morar em São Paulo. Conseguiu se formar e se especializar em cirurgia plástica de reconstituição facial. Sempre sonhava em ter a oportunidade de reconstituir uma face tendo como modelo o rosto de Marília. Sua obsessão pelo rosto da amiga de infância e adolescência o fez se tornar um dos melhores especialistas nessa área médica. Fez fortuna, casou-se com Marília e por todo o canto da casa ele distribuía fotos do rosto da esposa, tiradas por ele desde o dia do primeiro encontro, ainda crianças, - ele vivia com uma máquina fotográfica a boldrié - passando pela adolescência e continuando na fase adulta. Admiração por demais exagerada, mas lhe permitia, pela comparação, acompanhar as mudanças que estavam se processando no rosto de sua esposa. Quase imperceptíveis. A beleza da mulher parecia acentuar-se a cada dia.
A partir dos sessenta anos de idade veio para Gustavo a necessidade de usar óculos. Ficou sabendo que precisava usá-los, com grau bastante elevado de presbiopia:
Olho Direito +4.00 D.E. ^ -1.50 D.C. X 180°
Olho Esquerdo +5.50 D.E. ^ -2.00 D.C. X 165°
Mandou confeccioná-los de acordo com o receituário recebido do médico, comprou bela armação e se apresentou à esposa. Ela ficou encantada com a nova fisionomia do marido. Ele, assustado, recuou, parecia não reconhecer a mulher, algumas imperfeições, em estado bastante adiantado, se mostravam nítidas naquele rosto tão amado. Aquela perfeição de rosto estava se desfazendo com a idade e ele já não poderia fazer mais nada. Não é aconselhável realizar reparação estética em idoso. Com cuidado, para não despertar suspeita pelo descontentamento com a realidade apresentada, afastou-se da esposa alegando necessidade de rever alguns documentos na parte da casa reservada ao escritório dele.
Angustiado, sentou-se em frente do grande retrato de Marília colocado em cavalete ao lado direito de sua mesa de trabalho, ela com 25 anos de idade, dia em que ficaram noivos, com todo o frescor que a idade permitia. Tão linda que Gustavo a comparava a Elisabeth Amalie Eugenie von Wittelsbach, conhecida como Elisabeth da Baviera e depois Elisabeth da Áustria. A história universal assinala que a beleza de Elisabeth impressionou tanto o imperador Francisco José I, que a fez imperatriz consorte da Áustria e rainha consorte da Hungria. Ficou conhecida como Sissi da Áustria e Hungria e teve sua vida imortalizada em películas cinematográficas, sempre interpretada pela também bela atriz vienense Romy Schneider, nos filmes Sissi, a Imperatriz, e Sissi e seu destino, todos dirigidos por Ernst Marischka e interpretados por Romy, o ator Karlheinz Böhm e a mãe de Romy, Magda Schneider.
Cabeça apoiada no tampo da mesa, Gustavo retirou os óculos do rosto e chorou longamente. Depois de certo tempo, apanhou um peso de papel que havia sobre a mesa e quebrou, em pequenos pedaços, seus óculos novos. A partir daí nunca mais foi ao oftalmologista. Acometido de glaucoma e depois pela opacidade total do cristalino, provocada por catarata que ele se recusara corrigir com lente, o cirurgião plástico perdeu completamente a visão.
Marília jamais perguntou ao marido por que ele deixara de usar óculos, tampouco por que se descuidara completamente de sua visão. Sua dedicação para com o marido que já não enxergava foi redobrada, e ele se sentia satisfeito com isso. Viveram recolhidos a casa que Gustavo havia mandado construir, em forma de palácio, até a sua morte. Marília morreu dois anos depois. A herança de ambos, já que não tiveram filhos, foi deixada para o Hospital Batista da cidade onde se conheceram e viveram felizes nos últimos anos de suas vidas, para ser usada na construção e manutenção da unidade médica de recuperação de traumas faciais em pessoas de parcos recursos.