A MANGUEIRA

Era um dia de sábado lá pelo meio da manhã quando ela chegou pelas mãos do meu pai, ainda muito pequenina. Ele deu-a de presente para minha mãe. Era costume ele presentear mamãe com plantas ornamentais, mas nunca com uma árvore, embora em nosso quintal já houvesse tido um imenso coqueiro, que fora sacrificado por estar oferecendo perigo aos moradores da nossa casa. Agora em seu lugar – quem sabe - futuramente teríamos uma mangueira da classe espada.

Lembro-me minha mãe emocionada com a mangueira nas mãos e procurando o melhor lugar do quintal para pô-la. Não sei ao certo quantas pessoas fizeram parte deste cerimonial, pois não tenho lembranças dos meus irmãos caçulas assistirem a esse inusitado ato. Creio que eu era uma pré-adolescente e a minha família estava a crescer. Tinha sempre alguém entrando na família ou sempre alguém partindo dela, mesmo que fossem parentes, amigos, conhecidos ou pessoas que jamais houvéssemos visto.

A minha família era mesmo muito grande, eram formados pelo casal, pelos filhos consanguíneos e filhos que eles adotavam pelos caminhos como seus. Tinham os sobrinhos, também os simpatizantes, pessoas que chegavam gostavam, e ali ficavam. Haviam também os empregados que poderiam ser quatro ou seis, variava muito, se a empregada quisesse levar a sua família para morar lá. Não poderia esquecer os animais, foram muitos os que passaram por aquela casa, coelhos, cães, gatos, patos, galos, pinto e galinhas, tatus e até uma linda onça. Todos eram aceitos de braços abertos, a casa era grande cheia de vida, havia muitos risos e um burburinho delicioso de gente feliz andando ou correndo pela casa.

No mesmo dia em que a mangueira chegou foi plantada, por minha irmã e minha mãe. Foi regada e apresentada ao sol, que chegou para abrilhantar as lindas pequenas e frágeis folhas coloridas.

Passaram-se alguns meses e um acidente chamou atenção de todos para a mangueira. Alguém inadvertidamente colocou bem próxima a ela uma haste de madeira, que sem equilíbrio caiu sobre os pequeninos galhos da mangueira que acabou abrindo seu tronco ao meio. Todos olhavam incrédulo àquele quadro estarrecedor. Mamãe com muito pesar chamou a minha irmã - que como ela amava as plantas - e juntas uniram e amarraram o tronco com um cordão. Secretamente ninguém acreditava que aquele jeito desse certo, porém nada disseram e esperaram para ver. Tempos depois, aquela operação pareceu surtir efeito. A árvore sobreviveu ao acidente, mesmo meio tosca. O seu tronco jamais seria igual ás outras, ele não cresceu e abriu dois galhos, um em cada lado, tão grossos como um tronco, dividindo assim a árvore, que ficou comprometida definitivamente. Porém, ela estava viva, forte frondosa e reinaria absoluta naquele tão singular quintal.

O tempo passou e muitas festas também passaram por aquele quintal e a mangueira linda e original assistia a tudo com uma imparcialidade de uma rainha. Nasceram e cresceram crianças sob a sombra dela, seus frutos eram enormes, suculentos e deliciosamente doces. Quem poderia imaginar que uma árvore de formato tão estranho daria frutos tão maravilhosos?

Houve um casamento naquela casa, a família toda se mudou para outra casa e alguns anos depois votaram, já com outra formação. Minha mãe estava muito doente e separada de meu pai, um irmão partiu para a Marinha e duas irmãs saíram para fazerem as suas vidas. A casa estava vazia, os empregados se foram e amigos também, restaram os ratos, a casa, o quintal e a mangueira. Agora tudo era silêncio, todos eram tristes.

Novamente o tempo passou e contamos duas mortes naquela casa, todos se foram, restei apenas eu, com meu marido, minha filha, uma cadelinha e a minha mangueira. Nunca mais fomos felizes, nem eu, nem a casa, nem ela. Tive uma crise de depressão. Meu marido foi embora e então notei que éramos muito parecidas, tínhamos passado pelos mesmos dramas, por perdas indeléveis, éramos solitárias, infelizes, velhas e doentes. Não tínhamos mais nada para oferecermos uma à outra nem a mais ninguém. Não tínhamos quem nos cuidassem. Seus frutos caiam apodrecidos e seus galhos não mais se renovavam como antes. Seus velhos galhos agora sustentavam poucos frutos e alguns ninhos de pássaros selvagens perdidos no avançar da cidade grande. E eu rolava deprimida pela grande casa vazia, de paredes frias, onde os fantasmas faziam sua morada. Estavam lá, todos eles, e eu os sentia a cada passo, a cada pensamento, a cada respirar meu.

Na páscoa um primo e um colega nosso do colegial vieram me visitar. Meu primo sonhou com minha mãe que pedira a ele para me dar um recado. Ela pedia para cortar a mangueira, e que eu deveria construir uma nova vida naquela casa, que a mangueira fazia parte do nosso passado e que seria melhor deixá-la lá, no passado. Fiquei muito triste com aquela mensagem, falei com minha filha, que a mangueira estava muito infeliz naquela casa, não havia gritos nem risos alegres de crianças roubando seus frutos em seus frondosos galhos. Não havia mais minha mãe para conversar com ela e o quintal que agora não passava de um simples pátio, estava tomado pela sua sombra, impossibilitando a chegada do sol dentro daquela casa. Sem flores, sem plantas, apenas folhas secas que mais lembravam a música do mestre Cartola. O pátio era agora uma vaga e triste lembrança dos tempos áureos de um quintal grande e festivo. E eu estava doente e precisava de uma pessoa para limpar as suas folhas que caiam sem cessar. Pareciam torrentes de lágrimas espalhadas sobre o chão claro de ardósias.

Foi com muito pesar que compartilhei com meus irmãos a “eutanásia da mangueira”.

Era manhã de um domingo um ensolarado, e um homem muito magro e pálido, de cabelos e cabeça grande. Que parecia ser um filho de Oxossi. Com um facão afiado na mão, foi para o pátio onde deu inicio a um estranho ritual. Começou a conversar baixinho com a mangueira. Fiquei observando do portão que dava acesso ao pátio e ouvi-o dizer que ela não sofreria. Era como um padre dando uma extrema unção. Com palavras de afeto, amor e compaixão. Ouvindo as confissões de um moribundo prestes a atravessar a ponte para uma nova vida. Ao vê-lo assim tão comprometido com aquela execução, senti-me culpada e deixei a cena quando ele começava a cortar os primeiros galhos da minha saudosa mangueira.