Fogo e Cinzas

FAVELA PRAIA DO PINTO, RIO DE JANEIRO, 10 DE MAIO DE 1969

Os gritos foram a primeira coisa de estranho que percebi naquele dia. Eu estava no meu barraco, descansando depois das horas e horas de trabalho. Então o barulho começou; decidi ignorá-lo, me virando na cama, mas de súbito, a porta abriu-se e meu vizinho entrou. Sacudindo-me com violência, ele gritou:

– Levanta, porra! Tá tudo pegando fogo!

Saí do meu estado semi-inconsciente, e com os olhos arregalados, o segui para fora. As ruas se encontravam intensamente iluminadas, nem parecia que era madrugada. Nesse exato momento realmente me dei conta da situação.

As chamas lambiam boa parte da favela.

ALGUM LUGAR NO RIO DE JANEIRO, DIAS ATUAIS

A década de 1960 foi a época mais tortuosa de minha vida. Disputas políticas, problemas sociais, Ditadura… e também a era das remoções dos moradores favelados. Eu, como um deles, não concordava com essa política pública. Entretanto, os governantes, juntos com a elite carioca, consideraram uma ótima ideia “limpar” o Rio, tirando o povo das casas e jogando-os em conjuntos habitacionais.

Bem, nada se podia fazer; protestos eram calados, ameaças ignoradas. No ápice dos meus vinte anos, achava isso uma injustiça. Ao ver várias favelas serem destruídas ao longo de 1964 e 1968, temi pela Praia do Pinto.

Todos os moradores se sentiam assim, e boatos sobre o fim de nossa favela começaram a surgir. O cúmulo aconteceu em março de 64, quando a secretária de Serviços Sociais veio até nós, prestar esclarecimentos sobre esse fato, dizendo que tais boatos eram falsos. Como se não soubéssemos que aquela Sandra Cavalcanti só mentia. Não compareci a essa reunião, e ri com gosto ao saber que ela saiu correndo ao ser apedrejada, sob vaias. Não me julguem, por favor. Tenho certeza que entendem minha raiva.

Mesmo com o medo, tentamos continuar a vida do melhor jeito possível. Pelo menos até o fatídico ano de 1969. Embora estivéssemos preparados para o pior, o incêndio foi uma surpresa. Lembro-me desse dia como se acontecesse hoje. A cacofonia que se instalou, as pessoas fugindo, gritando. Ah, o fogo. O fogo que brilhava, queimava, assustava.

No início, tivemos esperança de que a ajuda chegaria a tempo. No entanto, ela demorou, não restando nada a lamentar. Depois de alguns dias, restaram somente cinzas. Segundo o relatório oficial, o princípio do incêndio ocorreu acidentalmente. Agora, quanto à continuidade dele, correram algumas histórias de que a destruição da Praia do Pinto foi a mando de empresários interessados em nosso terreno. Conversa fiada. A versão unanimemente aceita foi a de “faxina”. O governo queria se livrar de nós. A terra era boa, considerada nobre, e só nossa presença impedia sua posse. Mas não tínhamos prova disso, é claro. E o Estado, com a maior cara de pau, fez um belo discurso, falando que sentiam muito pela tragédia e que levariam os desabrigados para outro local. Quanta bondade!

Eu não fui. Corri pelo Brasil, sem pouso, por uns dez anos. Sobrevivia com qualquer bico que aparecesse. Depois, com a ira já abrandada, voltei para o Rio. Muitas coisas tinham mudado, então. O condomínio Selva de Pedra tomava o lugar de minha velha morada. Porém, não é o que dizem? Não importa o quanto as cinzas sejam amargas, doloridas. Uma fênix sempre ressurgirá sobre elas.

BASEADO EM FATOS VERÍDICOS

Elaine Rocha
Enviado por Elaine Rocha em 03/07/2012
Código do texto: T3758356
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