Faca, sangue e torradas
Escolheu a tarde de sábado para fazer algo que a mãe ensinara há alguns anos, mas que manteve como hábito: fazer torradas. Reunia o pão amanhecido de alguns dias, separava uma ou duas assadeiras, a manteiga e duas facas. Porém sempre soube que não conseguiria fazer nada realmente tão bom quanto a própria mãe.
Quantas vezes já ouvira dizer que não sabia cortar nada direito, que quando torcia alguma roupa tinha jeito de homem, que não sabia fazer as coisas da forma certa, que seria uma péssima dona de casa.
Insuficientemente boa.
Sua pele era extremamente branca, e, mesmo não estando em seu peso ideal, suas veias sempre estavam em evidência, o que a fazia parecer ainda mais frágil que já era.
Se cortava, no entanto, com uma incrível facilidade. Como se aquilo lhe fosse tão natural como tomar banho todos os dias.
Mas estava farta.
Farta de suportar tudo sozinha.
Farta de correr atrás de coisas que, ela tinha certeza, não conseguiria alcançar.
Farta de ouvir mentiras de pessoas que considerava amigas.
Farta de saber que não era suficiente para nada, para ninguém, nem para si mesma.
Tinha sangue bombeando dentro de seu coração, mas sua alma estava vazia.
Tinha se perdido de si mesma, dos outros, de tudo que existia.
Em certo momento, a faca pareceu atrair-lhe ainda mais.
Sua cerra parecia incitar-lhe a provar que era capaz sim, que tinha coragem o suficiente para fazer o que bem quisesse.
Até que ela enfiou-a no peito, sentindo um forte tranco com a auto-apunhalada.
Sangue começou a escorrer pelo seu casaco de cetim branco, que agora tornava-se vermelho sangue.
Ela enfim sentia-se bem. Conseguira enfim provar a si mesma que tinha coragem suficiente dentro de si.
- Marina?
- Oi mãe.
- Está bem, minha filha?
E ela despertou, mais uma vez de seus pesadelos diários, voltando a cortar os pães, e não os pulsos, para fazer as tais torradas.