Carnaval, samba e chocolate

Retratos do cotidiano:

Carnaval, samba e chocolate

Como o tempo passa. Já é carnaval!

Ontem mesmo estávamos retirando os assados do forno, para a ceia de Natal e agora temos que correr com a fantasia.

Que fantasia nada! Desde que Marina se casou, só samba no tapete da sala, o marido detesta carnaval e tudo mais que deixa a mulher feliz.

-Isto é pouca vergonha! Cinco dias de folia, só mesmo no Brasil, para acontecer tamanha malandragem.

Marina já está cansada de ouvir essa ladainha, todo ano é a mesma conversa. Rogério não deixa por menos e chega a magoar a mulher.

-Mulher direita não vai nessas coisas.

-Mulher direita lava cuecas do marido, faz comida e agüenta o bafo de cerveja e cigarros, não é mesmo? Grita Marina lá da cozinha.

-Não reclama mulher, você tem vida boa.

Vida boa... Pensa Marina. Trabalha a semana inteira no Banco, isso quando não tem que voltar aos sábados para terminar algum serviço urgente, sem empregada fixa, só diarista, uma vez por semana. Três filhos para educar, ou melhor, para tentar acompanhar na escola e nos conflitos diários. Às vezes é tudo tão difícil.

Mas hoje é carnaval. É fantasia. É faz de conta...

Era uma vez... Uma princesa que sambava na avenida, os aplausos faziam o asfalto tremer. Seu corpo seminu mostrava a graça e a beleza de uma raça, os sons dos tamborins aceleravam-lhe o coração...

- Marina, traga a minha cerveja. Faz meia hora que to pedindo. Tá ficando surda?

_ Rogério, hoje você vai jogar truco de novo?

_Opa! Já combinei com o Zezão e o Cumbica, eles vão trazer uns parentes deles que estão aí, passando o carnaval. Dois “engomadinhos”, que moram em Santos e acham que podem ganhar da gente no truco. Vamos depenar os coitados. Hoje mulher, você pode dormir porque não tenho hora pra voltar.

-Rogério, as crianças não estão em casa. Vamos aproveitar pra ir na avenida ver o desfile. A Fátima falou que ontem esteve lindo!

-De jeito maneira! Larga o combinado. Deixar o Zezão sem parceiro no jogo? Sinto muito, não dá. Vê na televisão é tudo a mesma coisa, é até mais bonito.

Sete horas, lá vai Rogério dentro de uma bermuda de brim marrom e uma camiseta branca de tremendo mau gosto, onde se lê: “Mulher é igual pipoca, enche o saco, mais não consigo parar de comer”. Marina odeia esta camiseta e o marido se orgulha da frase machista que traz no peito.

Sozinha, liga a televisão e pega o seu pote de chocolate, acomoda-se no sofá. Pelo menos pode sonhar, não tem ninguém para atrapalhar.

O telefone!!! Dá vontade desligar da tomada, deve ser o Cumbica ou o Zezão, procurando por Rogério, deixa tocar várias vezes de propósito.

-Alô!

- Oi Marina... Já estava para desistir, você demorou a atender.

-Desculpe Fátima, não imaginava que fosse você.

-Marina, vou passar ai para te pegar, vamos juntas ver o desfile.

-Pelo amor de Deus, o Rogério me mata!

_Mata nada... Ele nem vai ficar sabendo.

Marina acaba cedendo. Com o coração acelerando, troca de roupa, passa um brilho nos lábios, ajeita os cabelos..

Cantarolando o samba enredo de sua escola preferida, apanha as chaves de casa e sai de mansinho. É melhor não deixar os vizinhos perceberem, podem comentar com Rogério e aí pode haver guerra.

A buzina forte chama-lhe a atenção, é a amiga que chega toda animada.

-Vamos Marina. Hoje a noite é toda nossa!

-Fátima não faça barulho, olha os vizinhos...

Avenida está linda, muito mais bonita que na TV. Quanto tempo...

Desde que se casou nunca mais pisou na avenida. Quanta diferença!

Mas hoje... È carnaval é ela esta ali... Matando saudades, voltando a viver...

Esquece do marido, dos filhos, do cotidiano, e cai no samba. A leveza de seus movimentos e a graça de sua dança contagia e arranca aplausos ao seu redor. Nisto alguém se aproxima e passa a fazer-lhe companhia, numa cadência sem igual, como se fossem velhos conhecidos e parceiros, os passos surgem como mágica e desenvolvem uma coreografia única de beleza e arte.

E assim vai noite adentro, Marina sequer percebe o adiantar das horas. Fátima sem companhia da amiga aceita um convite para um drink no clube. Num intervalo da música, Marina se assusta e tenta se desculpar.

-Meu Deus! Que horas são?

-Por favor. Você não é nenhuma Gata Borralheira. A magia não termina assim que o relógio bater meia noite. Retruca com humor o seu príncipe dançarino e continuou sorridente:

-Meu nome é Marcos e há tempos não danço como hoje, você é formidável.

-Obrigada. Eu sou Marina. Sinto muito, tenho que ir embora.

Marcos segura-a pelo braço e gentilmente pede que fique. Sem saber o que é certo ou errado, apenas o que a agrada. Aceita o convite.

Conversam, bebem, dançam e se conhecem... Já passa das cinco da manhã, quando se despedem. Marina sente o sangue gelar, lembra que existe um Rogério em sua vida.

Tem que enfrentá-lo, sem culpas e sem medo. Percebe então que esta forte. Sente-se plenamente feliz e capaz de vencer o que fosse preciso.

Em casa a garagem está vazia. Rogério ainda não chegou. Ótimo, um problema a menos. Rapidamente troca de roupas e acomoda-se no sofá da sala, liga a televisão e ouve o barulho do carro do marido, fecha os olhos e finge dormir. Rogério entra pisando devagar para não incomodá-la, abaixa para beijá-la, mas desiste, com a consciência pesada por deixá-la a noite inteira vendo o desfile na TV.

Perpétua Amorim
Enviado por Perpétua Amorim em 08/02/2007
Reeditado em 08/02/2007
Código do texto: T374231