Diferenças básicas entre Adejante e Manezin
Meu amigo Adejante conversa bastante mas não me canso de ouví-lo, pelo simples fato de sempre haver algo novo nos seus ditos. Certa vez me despertou pra uma coisa muito interessante: diz que passa horas ouvindo vozes estrangeiras em rádios pela internet. Para ele as vozes são música. Das músicas que gosta, tem um por quê pra todas e explica por exemplo as canções em homenagem ao Jacó do bandolim, “naquela mesa”, “saudade de Amélia”, “amanhã será um lindo dia” do Guilherme Arantes, cálice de Chico Buarque e muitas músicas de crítica de artistas para com outros artistas. Diz que Raul Seixas e Rita Lee criaram canções criticando outros artistas que faziam sucesso na década de 1970. Quando Raul dizia: “eu também sou um rapaz latino americano que sabe se lamentar”, estava se referindo ao cantor cearense Belchior... fala dos timbres de algumas cantoras do Brasil e do exterior, me chama a tenção para a voz chorosa e os gritinhos da bem afinada Joelma calipso, para o grave de Nelson Gonçalves e pra suavidade de um Augusto Calheiros. Diz que o Djavan é um dos mais sofisticados compositores e intérpretes que ele já ouviu e que os cantores baianos são muito unidos quando se trata de divulgar a imagem da terra deles.
Já nas conversas que tive com o Manezim poeta, o repertório é bem outro, este quase não tem estrada, o horizonte é curto, nunca viajou pra longe, não sabe apreciar as belezas da natureza, sabe rimar e metrificar, mas ninguém é poeta só por isso. Não é nem ao menos bucólico-lírico, o que ele escreve são coisas sobre que leu. É sobre Lampião, sobre escritores e poetas que ele descreve, e sua opinião é a dos críticos, muitas vezes o ouço falar mais da vida dos escritores do que sobre suas obras. Posso assegurar que as criações de Manezim soam mais como resenhas do que como observações de uma alma de poeta. Porém Manezim tem sim suas virtudes, é do tipo que não tem vícios que o tornem um pecador, mas se existe pecado capital, ele pode ser enquadrado na conta de grande preguiçoso para o trabalho, para uma atividade que, pelo menos lhe renda o sustento, pra falar não, ele está sempre disposto a tagarelar alguma coisa embora nem sempre diga algo que preste.
O Adejante disse-me em tom de galhofa que ele mesmo tem nome de Salomão mas, sem modéstia se acha superior ao personagem bíblico desse mesmo nome, pelo menos em sensatez, e explica que Salomão o rei, foi muito justo e sábio nuns momentos de sua vida mas igualmente muito insensato e exagerado noutros, porém, ele, Adejante, usa da equidade e tem igual autoridade de mandar um sujeito como Manezin ir ter com as formigas, porque nisso, ou seja em assunto de labor, o poeta velho estava abaixo dos insetos que trabalham e conseguem pelo menos o seu sustento.
O velho preguiçoso é do tipo que gosta de repetir os seus ditos, e é por isso que Adejante o chama de bicho-refrão, ramerrão, lugar-comum, e às escondidas de mamute. Manézin na verdade é um sujeito pedante, contador de vantagens, imagina que depois de morto será homenageado por sua obra.
Gosta de falar sobre toscas criações de poetas cantadores que ele diz serem grandes, e acentua: é grande! é grande!
Tem decorado uma porção de estrofes de repentistas do passado. É um sujeito perrengue, chama Adejante de pau-d´agua, é despeitado com outros que foram seus colegas de profissão, calunia e os critica de vez em quando, manifesta menosprezo pelo mérito dos outros na maior cara dura. Fala que passou muita fome e que igualmente comeu pouco priquito, é assim que se refere à genitália das fêmea mulheres. É homem de alguma leitura mas, de entendimento superficial. É de uma lógica arcaica, parece que muita coisa dele está estagnada, morta, e ele coitado, ainda gasta a maior parte do seu tempo ou todo, falando sobre assuntos sem a muita importância local. Se fosse pelo menos futebol recente interessava mais, mas quem é que aqui no comércio da nossa cidade quer saber da vida de escritores do passado, que Machado de Assis era filho de um pintor de parede e que Lima Barreto vivia tomando cachaça e criticando a sociedade carioca do início do século vinte? Quem? Pois é, nem doido que escutar esse tipo de conversa. Pois é assim mesmo. Claro que já propus a ele que procurasse uma escola para ensinar esses assuntos de literatura, mas quem foi que disse que ele quer ir trabalhar? Muda de assunto e foge de situações assim mais rápido do que o diabo da cruz. Gosta é de viver alugando o ouvido dos outros para assim parecer sabido, pensa que me engana?
Vive acusando, defendendo, comparando, aliás comparar é o que ele mais sabe fazer e gosta. Tem o despautério de dizer que Jackson do pandeiro é maior do que Luiz Gonzaga, que fulano canta mais do que sicrano, que Paulo coelho é um escritor fraco, que Patativa só se tornou famoso porque alguém publicou a sua obra, e que a obra dele Manezim poeta, é tão grande ou quiçá maior do que a de Patativa, com um detalhe que ele, Manezin, não é um poeta matuto mas sim um Parnasiano. É de uma cara tão dura que nem sei. Nunca foi diligente, diz que trabalhou cantando, mas não levou muito a sério a carreira da viola. Viveu alguns anos com uma mulher e tiveram uma filha, depois separaram-se. Está quase chegando aos sessenta e pensa em se aposentar pela previdência social mas, imagina que pode morrer antes de merecer o benefício. Teve e tem alguns padrinhos pela cidade e praticamente vive da caridade destes. Por outro lado é sujeito sóbrio, que não esmola nem tem maus hábitos, seus únicos empecilhos de vida certamente são sua preguiça crônica e sua grandiosa língua ferina, o bicho é ruim! Um Dom Quixote de magro, um tagarela de primeira, um insatisfeito com o mundo. Numa coisa ele se parece com os padres, pregadores e pajés em geral, pois é, acha que quem tem mais, tem que dar as coisas a ele. Nunca prestou um concurso público mas acha que sabe mais do que os alunos que freqüentam os cursos superiores. É dono de uma caligrafia nojenta de feiosa mas, não se exercita pra melhorá-la, definitivamente não quer saber de trabalhar, nem de melhorar, coleciona muitos livros e costuma dizer que os tem ao invés de dizer que os lê ou leu: eu tem-o, Os Miseráveis? eu tem-o, a obra toda de Machado eu tem-o, o Grande Sertão de Guimarães eu tem-o, os poemas de Augusto dos Anjos eu tem-o... o cacete eu tem-o! esse tem-o dele, é um mau de sua pronúncia de desdentado. Parece sentir grande prazer em dizer que tem bastante livros, se sente o tal por esse feito de possuí-los, mas sua visão e interesse não parece ser para com as obras e sim para com as vidas dos escritores. Sabe muito sobre Lima Barreto, Adolfo Caminha, Euclides da Cunha, Machado e nisso de contar como foi a vida de alguns deles, se deleita, principalmente se houver algum drama ou escândalo no meio. Faz disso uma espécie de conto contado, aí cita nomes, crimes, datas, tudo. Um manual de resenha ambulante, diz das diferenças entre as obras de Olavo Bilac e a de Augusto dos Anjos, entre Coelho Neto e os modernistas e tal. E repete o ramerrão: Patativa só se tornou famoso porque alguém publicou a sua obra e levou pra França seus poemas para serem lidos na Sorbone, e por aí vai enchendo o saco de quem o escuta.