Ditos e feitos de Adejante
Ditos e feitos de Adejante
Adejante diz que foi primeiro pra Manaus, onde um tio seu trabalhava, na viagem viu muitas cidades do Piauí, Maranhão e Pará, a navegação no rio foi desconfortável mas nem por isso menos fascinante. Diz que trabalhou por lá ajudando o tio na venda de redes, que esteve na serra pelada, fez pescarias tomou cachaça, dançou carimbó e lambada nos cabarés. As mulheres da região são índias ou descendentes de índias com nordestino, por lá é muito difícil encontrar uma loira legítima. A sua bebida preferida sempre foi a aguardente, por não encher demais a barriga e por dar sede de água depois. E continua: “ rapaz pra se ter saudade de alguma coisa é necessário que se tenha vivido, visto ou sentido essa coisa para que se possa recordar depois. O Neruda diz que viveu, mas quem não viveu? Cada um vive o que dá prá viver, nem todo mundo conhece a satisfação de dirigir um carro de boi, andar de bicicleta, voar num balão, escapar numa queda de avião, navegar num barco à vela no rio Jaguaribe, subir num coqueiro, pescar de tarrafa, dançar um xote com uma cabocla nova, beber uma pura com limão e tirar o gosto com ostra crua, chupar caju no pé, comer peixe com pão como fez Jesus, sentir o frio do sul, viajar de caminhão durante alguns anos e todo dia vendo e chegando em um lugar diferente... fumar não faz bem, mas acho prazeroso, beber aguardente também é prejudicial, modero os dois e vou indo, esse negócio de moral é muito bom prá quem já foi imoral e agora se mete a aconselhar os outros prá não fazerem o que eles já fizeram e às vezes ainda fazem. Imagine que conheci duas senhoras, duas amigas, fumantes inveteradas e uma delas a mais abastada se punha a falar que a outra fumava muito, e ela? Não se enxergava não?
Rapaz! Enquanto se é jovem se é inexperiente, eu mesmo digo que todo rapazote deve aprender por si só algumas coisas que a escola não ensina. É necessário prática, é necessário treino, veja se alguém consegue andar de bicicleta na primeira tentativa, se alguém dedilha um violão de primeira, se alguém joga bem a sua primeira partida de xadrez, veja, interrogue outros que praticam essas atividades e ouça a resposta deles... eu mesmo sempre gostei de cantar, cantarolar pra me alegrar, bater um pandeiro, dançar e não é com a intenção de fazer arte pra os outros me pagarem, faço isso porque sinto prazer em fazer, não é pra me mostrar, me exibir não. Todas as atividades que exerci na minha vida sempre procurei tirar delas a devida satisfação, desde o tempo em que desenhava a lápis e antes até, quando pescava traíra no açude, ou pegava um passarim de arapuca. Peço a Deus que não me tire a satisfação de fazer alguma coisa, acho que eu excomunguei muito cedo a preguiça. Olha que eu gosto até de uma pandorga, quando a euforia toma conta de mim eu danço até sem música, assobiar também gosto muito. Rapaz desculpe o assunto esparso, mas é só assim que sei me expressar bem, eu fui pau pra toda obra, mas é aquilo, algumas circunstâncias nos traem, em alguns momentos e dias não estamos bem e aí é bom parar e certas coisas nem fazer. Quando eu era menino fui coroinha de igreja e achei aquilo bom, eu nem entendia bem porque o padre às vezes levantava a voz e depois baixava no sermão, hoje eu sei, sou até meio parecido com ele no jeito de falar. Mas depois de ser coroinha, quase não fui vendo as transformações, quando de repente estava de olho nas colombinas, e mesmo que eu quisesse ter me devotado à missão celibatária, coisa que nunca pensei, a minha vocação era outra, comecei a sair no faro da mulherada e é inegável: o que Deus dá, ninguém pode negar! Não creio que eu seja hipócrita, sou genuíno isso sim, hoje quase nada me causa espanto, já me livrei de muita esparrela, não vi tudo, mas vi muito, muito mais do que esses de minha idade que nunca saíram daqui. Trabalhei! e hoje posso me dar ao luxo de vir por aqui e tomar umas duas. Rapaz, fui artesão, fiz escultura em madeira, em coco, de barro, fui entregador de leite, vendi carvão, peguei caranguejo nos mangues, e imagine, eu soube que Aristóteles, o grego filósofo dizia que o artesão era um escravo qualificado no tempo dele, ele e Platão não viam grande coisa nem em se ser comerciante, para eles era mais importante ser militar, e isso eu também fui. Já na época do Cristianismo foi que todo os tipos de trabalho foram enaltecidos, o mundo velho vai mudando a todo instante, e mesmo hoje o que é de um jeito aqui, pode não ser bem aceito acolá. Eu gosto muito de falar sobre trabalho e outras coisas que fiz, a gente só sabe mais é da gente mesmo, e eu falo melhor sobre o que passei, pratiquei e vivi. Me chamo Salomão, Adejante é apelido da época do tiro de guerra, nunca vi uma Juliana feia, e conheço um bocado de malandros daqui e dos lugares onde andei, e vejo que tem gente que não quer fazer esforço nenhum, sei como é, o pior cego é o que não quer ver, e o pior preguiçoso é o que não quer trabalhar. O sargento me observou e me disse um dia que eu gostava de adejar, e eu que nunca tinha ouvido esse nome, fiquei meio sem jeito, mas logo que encontrei um dicionário descobri o significado da palavra. Aquilo era coisa de passarim que voa e se sustenta, depois foi que fui entender o elogio que o chefe me fazia, mas o negócio é que ele falou várias vezes no meio do pelotão inteiro reunido, que eu gostava de adejar, e um dos companheiros, um dos gaiatos, começou a me chamar de adejante e esse novo nome pegou. E eu nunca achei mau esse apelido, me orgulho até. Talvez aquele sargento tivesse algum conhecimento de psicologia, sabe lá, ele viu como eu me comportava no cumprimento das minhas obrigações, tenho uma tendência à responsabilidade, alguns professores meus também me falaram de boas qualidades que observaram em mim, mas não estou aqui para me empanturrar de elogio não, sei que logo resolvi fazer alguma coisa, alguma atividade, fui vendedor de carvão, naqueles anos, ninguém tinha fogão a gás por aqui, vendi tapioca... rapaz eu sou do tipo que defendo todo apoio para que as pessoas possam andar com as próprias pernas, mas se a pessoa não quiser, não merece o dinheiro público, acho que todos devem ser responsabilizados pelos seus atos, eu sei que não há igualdade de oportunidades, meu caro você já imaginou? existiu um francês que era contra os filhos receberem herança, já imaginou? por aí se vê, o sujeito que era de família abastada tinha mais condições de se destacar, de ir pra melhores escolas, certo? Já um pobre qualquer, não, eu sei que a assistência social pra uns é meio de vida, mas isso é hoje, quando o governo fornece um bocado de ajuda, mas nem sempre foi assim. Vou deixar de falar só do que penso e vou falar do que fiz que é melhor, acho que o artista tem prazer em fazer a sua arte, eu mesmo nem sempre trabalhei por pagamento, ao desenhar, ao compor, ao esculturar eu sinto grande satisfação, isso sem falar dos passa-tempos como pescar, tocar pandeiro e cantar, nadar, jogar xadrez... vá vendo como são as coisas, que bom se cada pessoa fosse responsável pela sua vida pelo menos como eu sou pela minha, todos fomos insensatos alguma vez, e daí? Todos erram enquanto estão aprendendo, é ou não é? Quem tem paixão tem pesar! E o que é que tem uma coisa a ver com outra? Sei lá!