Luciana
Quando Luciana acordou às sete horas da manhã, levantou os olhos automaticamente em direção ao vidro da janela, esfregando-os com força, percebeu que o mundo estava mais triste do que de costume. Além de cinzento e chuvoso, o céu riscado por nuvens negras e uma espessa neblina dava àquela cidadezinha já deprimente um ar ainda mais doentio, o que não contribuia com nada ao espírito atribulado de Luciana.
Seus pulsos ainda ardiam – ardiam não, queimavam intensamente – resultado da crise da noite anterior. Sua boca fora mais rápida do que ela; quando percebeu, o muffin já descia pela sua garganta, vitorioso, e agora – ah, agora alojava-se no fundo do estômago, de onde não sairia nunca mais. As lágrimas escorriam pelo seu rosto gelado enquanto devorava o bolinho. Era um misto de prazer, dor e arrependimento. Luciana não vomitava nunca. Tinha um nojo metafísico disso, e a própria ideia a fazia ter arrepios.
Mais ou menos uma hora depois de ter comido o muffin, Luciana trancou-se no banheiro com um pequeno canivete. Passou-o pelo pulso sem força, sentindo o poder que aquela fina camada sugeria. Uma pele branca fina, uma extensão entre a vida e a morte, e ela segurava o metal frio que a arrebataria da própria vida. Já não chorava mais – seus lábios agora se contorciam estranhamente num sorriso de desprezo contra o que estava fazendo – como se estivesse com pena de si mesma. Queria cortar fora toda a sua fraqueza, toda a sua insegurança.
Com uma rapidez impressionante fez o primeiro corte, na horizontal (não era morrer que queria, pelo menos não agora) e o sorriso de desprezo sumiu imediatamente do seu rosto. O canivete brilhou vermelho, e agora um ar de repulsa e apreensão tomava conta do seu ser absoluto. Seu espírito implorava que aquilo não fosse feito novamente. Suas feridas ainda estavam abertas, e ele sofria em silêncio.
Mas Luciana não era escrava de seu espírito. Cortou mais uma vez, e dessa vez o corte não foi tão superficial. O sangue derramava-se na pia do banheiro, igual quando lavamos pincéis sujos de tinta guache. Mas aquilo não era tinta – e sim a sua própria essência derramada. Já não tinha expressão alguma no rosto. Só precisava se ver livre daquilo o mais rápido possível.
O terceiro corte penetrou fundo na carne. Nenhuma sombra de dor passou pelo rosto de Luciana. Ela sempre tomava o cuidado de tentar não atingir nenhuma veia. Nesse momento seu espírito implorou perdão, e quando daria o quarto corte, Luciana hesitou. Mudou o caminho do canivete e acertou no mesmo lugar que o segundo corte, perfurando-o mais uma vez.
Jogou o canivete no chão e se encarou no espelho. Não via nada além de mágoas e tristeza. Foi quando começou a chorar. Agora, Luciana era essencialmente humana – nada mais que isso. Sua humanidade a fez chorar. Seu espírito ainda estava lá, encolhido e sangrando – mas a parte humana de Luciana chorava.
Abriu a torneira e deixou o pulso por alguns segundos, ainda chorando. Lavou-o com sabão e revolveu-o em um pano fino de algodão, que utilizava para situações como essa. Sem pensar em mais nada, deitou-se na cama e dormiu como um anjo ferido.
Quando levantou-se, ainda estava abatida e triste, também pelo dia que fazia lá fora. Foi ao banheiro, lavou o rosto e retirou as bandagens da noite anterior. Voltou para o quarto, entrou dentro de um simples vestido preto, calçou um par de botas de couro, prendeu o cabelo num elegante coque no topo da cabeça, pintou os lábios com um batom vermelho-calro, realçou os cílios e aplicou uma fina camada de pó sobre as maçãs do rosto. Por fim, colocou uma munhequeira preta e grossa sobre o pulso ferido e admirou-se no espelho.
Sorriu.
Tudo estava bem.