Lagoa dos Barros
Olivia desce do ônibus. Caminha descalça pelas areias brancas até a margem da Lagoa. Escuta o som da suas águas que lambem a praia. Olha sua silhueta e conversa com seus mistérios. A Lagoa dos Barros, ajoelhada aos pés da Serra do Mar, é palco das desgraças que viveram as famílias dos suicidas, dos afogados, dos submersos com pedras atadas ao pescoço. Esta Lagoa, já contava vovô Xico, esconde segredos que nunca conheceremos. Ela não quer nos fornecer peixes, apesar da fartura daquelas águas. Não acolhe o navegador (ele poderá trazer- lhe a nave dos loucos e ela não tem a ilha de Narragônia* para hospedá-los). Os que se atrevem a adentrá-la, eis que naufragam, se perdem ou congelam em suas águas.
A Lagoa dança na borda da estrada BR 290, Free Way, que liga Porto Alegre a Osório, numa distância de cem quilômetros. Esta imensidão de água sopra ventos fortes que faz rodopiar uma imensidão de cata-ventos geradores de energia eólica. Agora, uma riqueza sem precedentes para a região. Mas isso nem sempre foi assim.
Em suas águas muitos jovens se afogaram. Muitos suicídios também se consumaram nas suas águas turvas.
Maria Luiza ainda habita nas profundezas, assustando transeuntes ou acompanhando cavaleiros que por lá ousam passar. De preferência, os que montam cavalos bem encilhados, rédeas trançadas com desvelo e palas esvoaçantes sobre os ombros.
- Esta lagoa esconde segredos, guarda lendas e tem mistérios que nunca serão reveladas, resmunga, num sussurro que só ela escuta.
Onde estão as canoas que afundaram na lagoa? Por que tantas pessoas a escolheram para darem fim às suas existências? Por que ela não acolhe os peixinhos que poderão crescer em suas águas frias e turvas?
- Ela está aborrecida porque o homem lhe arrancou as saias, cortando-lhe os pés com aquela rodovia preta. Está furiosa e vai comer aquela estrada toda, falou o velho sentado numa pedra grande, perto da margem, fumando um cachimbo fedorento.
Olivia, que não vira o tal homem, vira-se assustada.
- Do que o senhor está falando?
- Da lagoa, ora. Aqueles homens vieram com máquinas enormes, jogaram terra com pedras dentro das suas águas e avançaram no seu leito. Não respeitaram a natureza. E a lagoa vai lhes dar a resposta, pode crer, moça. Ela vai subir e comer toda esta estrada que fizeram em cima dela.
Olivia sempre caminha pela praia até a casa de dona Maroca, sua tia que mora ali perto. Ouvira falar das lendas e mistérios e acredita neles com todo o respeito. Também se preocupou quando a estrada adentrou na lagoa comendo-lhe grandes
pedaços. Nunca ouvira falar de preservação, de cuidados com suas margens. Sabe apenas que tentaram fazer uma estrada reta que a cortasse mais ao fundo. Mas seu solo não oferecia condições de se firmarem pilastras. Por isso deixaram as curvas que serpenteiam a montanha. Ainda assim, lhe tomaram parte do leito. Mas há os que a respeitam e lamentam essa invasão. Sabem do risco de uma subida abrupta que possa destruir a rodovia e as construções que por ali fizeram.
Um vento barulhento começa a soprar. As ondas se encrespam, espantando Olivia com os cabelos desalinhados. Ela se abaixa para colocar os sapatos e percebe que o homem sumira do mesmo modo como aparecera.
Um temporal derrama-se sobre a terra. Olivia corre e se abriga na primeira casa que encontra. As mulheres rezam com rosários entrelaçados nas mãos, enquanto os homens arredam os móveis e levantam as camas. As crianças choram, o gado se protege do temporal sob a figueira centenária, a mesma que ainda guarda em seu ventre as balas disparadas na Guerra do Farrapos.
Olivia se junta às orações. Por ora a força que lhe move é a fé. Ela sabe que muito há por vir, que muito ainda há para se aprender. Ela tem certeza de que ouviu as vozes, olhou aquela imensidão de água escura e sentiu a chuva fria lhe gelando o rosto. Falou com o velho. Lembrou das histórias macabras que povoaram sua fantasia inocente de criança, quando seu avô lhe contava as lendas da Lagoa. Lembrou do boião de medalhas de ouro que a mucama enterrava no chão da cozinha, enquanto o vulto da moça passava em frente da janela.
Hoje, lenda e realidade, medos e pressentimentos se misturam. Olivia, que vê mais do que nós todos, sabe, que num dia destes, a Lagoa vai comer a estrada, como já comeu tanta gente. Disso ela tem certeza. Mas o homem que paga e manda, não acredita no que sempre contam os velhos sentados nas pedras à sua margem.