Reflexões de um pai

Uma doce lembrança

Reflexões de Marcos Benazzi

Nem mesmo a chuva imponente e gélida que incessantemente desmoronava sobre os pensamentos ativistas duma cidade tardia, transformando em bruma o saudosismo do céu de outubro, foi capaz de roubar do pequeno e valente coração de Kelly a alegria radiante que havia encontrado em seu mais novo e curioso ciclo de amizades. E fazer amizades não era algo que considerasse difícil; os dons pertinentes à idade e uma personalidade marcante de uma artista que, com muita habilidade no uso das emoções, conseguia envolver a platéia num manto de fascínio tecido com plumas de suspiro e admiração. Sentia-me satisfeito e ao mesmo tempo indigno por tê-la como parte importante de minha vida, uma das peças fundamentais nesse quebra-cabeça disforme. Costumo dizer que Deus deu-me um presente, uma chance de pertencer a algo de fato importante. Mais que isso, deu-me um motivo sólido para esperar um milagre, o maior de todos eles. Minha amada filha, hoje com onze anos tem se revelado mais que um milagre... Ela tem sido a voz de Deus a falar em nossos corações. Lembro-me da primeira vez em que sua presença mudou a atmosfera fumarenta em nosso lar. Na época, não tínhamos a menor noção de quem era Deus e quais eram suas intenções a nosso respeito. Uma atmosfera sobrenatural pairava sobre nossas cabeças e não tínhamos a sabedoria para entender esse mover. Tudo era bem mais difícil. Neste momento, regressarei alguns momentos no tempo por força das boas lembranças, atônito com a pressa dos anos.

Sofremos o que podemos denominar como “a metamorfose do silêncio e do caos”. Num bom sentido é verdade. Mara e eu sempre fomos pessoas fechadas e adeptos de um silêncio incômodo. Nossa vida não possuía nada de interessante e não esperávamos que houvesse. Terminaríamos nossa história nesse miasma do tempo, não fosse a providência divina mudar a história.

De repente, uma porta para mudanças abriu-se como um rasgo no véu de nossa resignação. O inesperado aconteceu. Ao entrar em casa pela primeira vez trazendo-a nos braços, contemplando as ínfimas variações da face minúscula, o esboço daquilo que logo se tornaria um sorriso reluzente, aquele ser tão indefeso, inocente demais para perceber as imperfeições dos braços que a envolvia, trouxe consigo um novo caminho, uma nova direção para esse nosso mundo caótico de proporções duvidosas. Era como se um arco-íris bailarino permeasse nossa história maculando em cores os tons de cinza que tentamos sem sucesso algum esconder por anos. Nossa vida se divide antes de depois de nossa filha. A sensação era a melhor já sentida por um casal recente que busca a felicidade, mesmo desacreditando em sua existência. Guardávamos cada detalhe como um tesouro inestimável, cada momento com ela, cada lembrança de suas primeiras gracinhas, cada gesto intencional. Kelly despertava o que havia de melhor em nós. Também me lembro do coral dos anjos; era assim que nos referíamos ao choro baixo e sibilante de Kelly nos primeiros meses de vida entre nós. Como não receber o toque complacente de sua influência? Era como uma razão pujante que nos fazia redirecionar atitudes que éramos impulsionados a tomar num ímpeto momentâneo, pressionado por pensamentos desequilibrados, nos precipitando muitas vezes, apoiados por nosso baú de convicções quase convincentes. Acreditamos que poderíamos viver nossas vidas baseados em nossos próprios “achismos” e ainda sim tudo seria perfeito. Tornamo-nos inflexíveis diante dela. Arrogantes, prepotentes. Porém, a realidade com sua mão de ferro revelou-se mais forte que nossas ilusões, dobrando nossas vontades. Deus havia movido a peça correta nesse jogo. Tínhamos agora uma chance, uma nova chance. Kelly chegou e completou a melhor parte, aquela que nos faltava.

Algum tempo se passou. Agora, esse ávido anjo passa seu tempo com flores e leituras bíblicas. Suas amizades mudaram. Deixe-me contar sobre a casa de vidro. Voltemos cinco anos atrás, quando tinha apenas seis anos. Oh, como isso me deixa com o coração moído de saudade.

Como disse, Kelly tinha amigos exóticos. Certa vez, inadvertidamente, ela cruzou a porta da sala na velocidade de um raio, trazendo à concha das mãos o mais novo integrante de suas aventuras pelo gramado. Kelly gostava de passar tardes inteiras no quintal em busca de travessuras. A euforia lhe aflorava pelos olhos, e uma mistura de luz e contentamento dava sentido aquele furacão de bons desejos.

Não há como esquecer coisas assim.

- Papai, papai... veja o que encontrei perdido no gramado! – esticou uma das mãos abrindo-a cautelosamente, valorizando o precioso achado – Acho que estava tentando fugir da chuva. – os pingos d’água serpenteavam a face clara de Kelly, colando fios de cabelos dourados junto à testa. Parecia não se importar com isso. Nem mesmo com o vestido lilás encharcado, gotejando continuamente sobre as pernas, deixando um rastro de pegadas brilhosas e empoçadas sobre o taco da sala. – Vou chamá-lo de Fernando!

- Deixe-me vê-lo, querida – inclinei levemente o pescoço a fim de dar boas vindas ao sem teto esverdeado e de pernas longas que se mostrava despretensioso à bela ornamentação da sala de jantar, satisfeito apenas com a maciez fria das mãos de seu mais novo soberano – Então era isso que fazia lá fora debaixo de toda essa chuva, senhorita Benazzi?

Kelly devolveu-me um tímido sorriso, afagando o grilo junto do peito.

- Podemos ficar com ele, não podemos papai? – soou mais como afirmativa que pergunta. Seu olhar interrogativo fixou-se em mim.

- Mais um morador nesta casa? – fiz uma breve pausa avaliando as possibilidades. Pelo visto, Kelly não havia pensado nelas. – Temos como administrar isso?

Percebi que não seria um duelo de opiniões tão fácil de vencer. Suas argumentações já estavam prontas feito balas no pente duma pistola apontada. Ela usaria o que fosse preciso para persuadi-me sobre a adoção do grilo, assim como um advogado responde por seu cliente diante do juiz. Fizera um novo amigo em circunstâncias adversas. Pelo que deu a entender em seu olhar, eu não tinha o direito de interferir em seu ciclo de amizades e a expressão em seu rosto intimidador deixava isso muito claro. Era o chocalho da cascavel dando seu alerta de perigo. Minha menina estava mesmo crescendo.

Foi ela a primeira a partir para o combate.

- Enfrentei grande dificuldade para salvá-lo, papai... ia se afogar com toda aquela água. Está chovendo forte demais agora. Mamãe tem um vidro de maionese vazio jogado na garagem. Posso pedir a ela. Mamãe gosta de grilos.

Não me dei ao trabalho de contradizê-la. Meu banco de memórias dizia o contrário. Mara detestava grilos e qualquer outro tipo de inseto. Todos eram repugnantes a seu ver, e o único lugar que desejava vê-los era debaixo da sola de sua sandália – esmagados!

- Interessante. Um vidro de maionese... Por acaso não seria aquele de tampa vermelha, cheio de pregos e com os parafusos do beliche, não é meu anjo? – A pergunta pegou Kelly de surpresa, fazendo-a arregalar os olhos. O silêncio falou por si mesmo. A pequena encharcada torceu os lábios. Sabia que a presença de “Fernando” era o suficiente para causar um infarto em minha esposa. O olhar cativante e pedinte de Kelly amoleceu-me o coração. Era só um grilo. – Tudo bem. Vamos encontrar um novo lugar para os parafusos e pregos morarem. Você venceu desta vez. Mas só desta vez. E, além disso, temos que saber o que sua mãe vai achar de tudo isso. Serei taxado como irresponsável, sabe disso, não é?

- Vamos falar com ela? – disse num tom insinuador, dando a entender que eu faria o que disse.

- Eu vou, você quer dizer... Mas pense na hipótese de Fernando ainda querer a liberdade, Kelly. Grilos não têm o costume de morar em casas de vidro. Nasceram para pular, cantar, interagir com outros grilos. Não são como nós, querida. Por que não deixá-lo morar no gramado? Poderá visitá-lo todos os dias. É o lugar perfeito.

A idéia afundou tão rapidamente quanto pedra lançada ao mar. Kelly não se moveu um centímetro sequer de suas pretensões. Éramos três mentes apontando para lugares diferentes: Um pai confuso, uma filha ambiciosa e um inseto importante. Ninguém melhor que ela para ensinar sobre perseverança. Ou seria teimosia?

- Não, papai. E se ele fugir ou for devorado por uma aranha malvada? É um grilo muito especial. Não vemos grilos em dias chuvosos. Ele estava ali porque não foi aceito pelos outros grilos. Acho que o expulsaram de casa, papai... Aí eu o achei quando fui tirar minha bicicleta do quintal. Nem se assustou com minha presença, veja só... Ele gosta de mim.

O grilo também parecia não se importar muito. Permaneceu em silêncio por todo tempo em que aconteceu o duelo.

O coração bondoso e misericordioso de Kelly causava-me admiração inexplicável. Uma criança tão preciosa, disposta e preocupar-se com as necessidades inconscientes de um inseto sem valor. Isso porque nós adultos tendemos a desvalorizar as coisas simples que Deus criou, errando ao classificar nossas prioridades pessoais como sendo a coisa mais importante. Kelly daria a vida em defesa desse grilo, se preciso. Em seu pequeno mundo de imaginações, essas eram as prioridades que deviam ser respeitadas. Um coração puro o suficiente para se importar com alguém. Um inseto exatamente. Sua inocência emparelhava-se à esperteza. Suas conquistas deviam sempre ser seguidas por uma suave dose de limite, o que Mara e eu fazíamos com muito êxito. Dedicávamos grande parte de nossos diálogos discutindo meios eficazes de oferecermos à nossa filha uma educação excelente, capaz de transpor a tentação ao desrespeito e conservar seu caráter intacto diante do poder diluente das más companhias e influências do mundo. Pedimos a Deus todas as noites para que Kelly optasse em permanecer no caminho que estávamos lhe ensinando, desde que o Senhor havia nos permitido tê-la nos braços naquele dia de abril, há onze anos. Podíamos dizer que esse era – não de uma forma irracional e idólatra – nosso maior plano de vida e investimento. Nossas atenções eram quase sempre direcionadas ao nosso anjo de cabelos dourados, ou grande parte, alguma coisa que estivesse ligada a ele direta ou indiretamente.

- Muito bem... Já que adotaremos Fernando como mais novo membro desta família, temos uma condição a ponderar: ele terá de morar na garagem junto com o... Como é mesmo o nome daquele ratinho amarelado, querida?

- Não é um rato papai, é um porquinho da índia – disse-me ela com ar de reprovação. – E o nome dele é Fred!

- Fred, isso mesmo! – Minha voz saiu com tom de desculpas.

- Acho que não é uma boa idéia, papai. E se Fred não gostar dele? Pode jantá-lo quando estivermos dormindo e a culpa será do senhor.

Kelly tinha um jeito de contrariar meus planos que me preocupava. Sabia como me fazer sentir culpa, desarmando minhas defesas.

- Entendo. – Levantei para esticar um pouco as pernas. Esforcei-me para cogitar a possibilidade de porquinhos da índia alimentar-se de grilos, mas, tudo era possível no fantástico mundo de minha filha. Então, por que retrucar? – Pode deixá-lo em seu quarto, querida. Espero que consiga dormir com todo barulho que esse bichinho é capaz de fazer. Não quero ouvir reclamações, estamos combinados?

- Sim – O sorriso aflorou novamente no rosto claro de Kelly lembrando o poder do sol quando rompe o tapete de nuvens ao findar de uma tempestade. Havia feito um bom negócio.

- Que tal um banho quente. A qualquer momento sua mãe estará de volta da casa da vovó e... você sabe, não queremos atritos, certo?

Kelly sorriu. Os lábios roxos concordaram com a idéia, embalados pelo queixo trepidante na tentativa de expulsar o frio que relutava em deixar transparecer.

- Papai, será que gritos tomam banho? – levantou uma das sobrancelhas. Parecia uma informação importante.

- Acho que Fernando já viu água suficiente por hoje. Ele precisa mesmo é de um bom punhado de capim. É isso que ele come, não é?

- Talvez papai, não perguntei a ele. Posso orar por ele antes de dormir? – sua pergunta exalava sincera devoção e solidariedade pelo grilo.

- Hum... Claro que pode, meu amor. Não se esqueça de mim e da mamãe. Precisamos de suas orações.

Ela assentiu. Estendi as mãos na incumbência de conduzir Fernando ao seu mais novo lar, a casa de vidro. O vulto empolgado desapareceu ante meus olhos e em questão de segundos ligara o chuveiro. Essas lembranças trazem bons sentimentos e me ajudam a manter de pé a fé que ainda me resta. Mara e eu estamos cansados de tentar ser fortes. Só uma força será capaz de sustentar-nos nesse momento assustador de nossas vidas, e será a força que está nas mãos de Deus. Minhas orações é que Ele nos ajude como encontrá-la.

Trecho do Livro “A Efêmera”

Autor: Karlos S Augusto

Lançamento previsto para dezembro de 2012

Karlos S Augusto
Enviado por Karlos S Augusto em 12/06/2012
Código do texto: T3720755