A arte de viver

É uma manhã de terça-feira. Excepcionalmente não tenho que ir muito cedo para o trabalho. Resolvo fazer uma caminhada um pouco mais tarde. Normalmente a faço muito mais cedo, por volta das seis horas da manhã. Os afazeres profissionais, associados à apenas vinte e quatro horas do dia, não me dão alternativas de escolha de horários. Me preparo e de moto me dirijo para o local apropriado, uma longa e sinuosa pista de caminhadas circundando um grande bosque encravado na região central da cidade.

De um lado, uma movimentada avenida, que a essa hora o fluxo de carro é mais tranquilo, já passou o horário de pico. Do outro, um bosque vistoso, com grandes árvores nativas de uma outrora densa mata, aqui encontrada pelos Bandeirantes.

Me aqueço, faço exercícios básicos de alongamento. Tomo um gole de água da providencial garrafinha. Olho para os lados. Quase ninguém. As dezenas de usuários habituais já fizeram suas caminhadas e já foram cuidar de seus afazeres, restando uns poucos retardatários como eu. Daqui uma hora eu também vou cuidar de minha agitada vida urbana.

Ao longe, onde a pista oferece uma reta de mais de um quilômetro, percebo a silhueta de um atleta correndo em minha direção, se aproximando, em corrida cadenciada, rítmica, segura. Ainda não se percebe se homem ou mulher. Apenas as largas passadas.

Se aproxima. Corpo esbelto de uma mulher, de seus quarenta anos, no seu traje azul escuro, tênis brancos. Rosto com expressão segura, não demonstra grande cansaço nem fadiga extenuante. Demonstra ser uma pessoa em forma, acostumada com os rigores das corridas.

Pouco tempo depois, passa diante de mim, seguindo sempre em frente, no calçadão quase vazio, sumindo logo em seguida, na curva à direita, sempre contornando o bosque.

Minha imaginação divaga. Quase esqueço de minha lenta caminhada. As cidades grandes oferecem uma imensidão de oportunidades aos seus habitantes. Inclusive de correr anonimamente em um calçadão, numa manhã de terça-feira.

Sigo inicialmente a passos lentos em direção oposta àquela mulher, aumentando a velocidade na medida em que os minutos transcorrem. Sinto-me bem, em paz comigo mesmo. O ar que respiro é fresco e puro, na medida do possível. Um ou outro gole de água ajuda a lubrificar a garganta. Ouço uma cigarra atarracada no tronco de uma grossa árvore a poucos metros da calçada. É possível ouvir também alguns pássaros sossegados, em suas vidas sem despertador e sem contas para pagar.

Após perto de um quilômetro e meio de caminhada, vejo no estacionamento, a mulher maratonista em exercício de alongamento e descanso após sua corrida, havia fechado a volta no bosque. Antes que eu me aproximasse, entra em seu carro, dá partida e se afasta. Eu a notara, mas certamente me fiz invisível, ela não se deu ao trabalho de perceber a minha anônima existência. Foi a primeira vez que a vi naquela pista, embora me faça assíduo frequentador. Talvez nunca mais a veja. Talvez a veja amanhã novamente. Isso não importa. Claro, não conheço e não vejo as mesmas pessoas todos os dias. Seria querer muito.

É a vida transcorrendo dentro de sua normalidade absoluta.

Quanto a mim, um membro participante dessa vida cheia de surpresas, dores e amores, creio ser, ainda que na qualidade de aprendiz, contribuinte para que tudo isso aconteça normalmente e naturalmente. Sim, eu faço parte desse complexo e fascinante exercício que é a arte de viver.

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 12/06/2012
Reeditado em 12/09/2012
Código do texto: T3719906
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