Eu sou o Sócrates!

Neste relato eu pretendo apresentar algumas informações da minha curta, porém intensa vida. Para começar, deixem-me apresentar-me:

“Eu sou o Sócrates”. “Prazer!”

Sou um pequeno canídeo originário do Tibete e que tem uma expectativa de vida entre dez e doze anos. Com tratamento adequado, consigo viver até os quinze ou dezessete anos. E com muita sorte e cuidados extremados, às vezes, eu alcanço até vinte anos de vida. E o melhor... Sem perder a jovialidade e a fleuma.

Hoje, sou conhecido pela designação de LHASA APSO, no entanto, nos primórdios da minha origem, designavam-me de APSO SENG KYE, que seria o equivalente a “CÃO DE SENTINELA QUE RUGE COMO LEÃO” em razão da minha missão original...

No místico Tibete, eu era o guardião dos portões do “Potala”, palácio do Dalai Lama, líder espiritual dos tibetanos, e das residências dos Ministros e dos membros mais proeminentes da sociedade tibetana. O meu trabalho era montar vigilância constante e prevenir a Guarda do Palácio sobre quaisquer aproximações inadequadas.

Era um trabalho fácil. Meus aguçados sentidos de olfato e audição permitiam-me perceber dos mais suaves passos do lobo-do-himalaia ao tonitruante e seco pisado das cavalgaduras. Eu conseguia, inclusive, ouvir o cadenciado passo do “drong”, vulgarmente conhecido como IAQUE - um ruminante do gênero ‘Bovidae’ muito comum no Tibete - a quilômetros de distância, mesmo a despeito das camadas de neve que cobriam as montanhas mais altas da terra, o Himalaia, lar primário dos meus ancestrais.

Como vocês já perceberam a minha origem é nobre, começando pela designação da minha linhagem: LHASA APSO.

O meu prenome, “LHASA” origina-se de ‘Lhassa’, o nome da capital da Região Autônoma do Tibete, civilização surgida a cerca de 10.000 anos a.C., e que se estabeleceu como império por volta de 2.300 anos a.C. Portanto, como podem ver, descendo de uma civilização antiquíssima.

O meu sobrenome ou complemento nominal, APSO, é uma derivação da palavra tibetana “APSOO”, que significa “OVELHA”, em referência à minha aparência peluda e fofa, assim como a textura da minha pelagem lanosa e áspera.

Uma característica única da minha nobre raça faz com nos sobressaiamos no meio da comunidade canídea. Senão vejamos... A junção da nossa inteligência à nossa fina audição nos leva a alertar os humanos, nossos parceiros, sobre quaisquer sinais de perigo.

Na minha região de origem, as montanhas do Himalaia, os lamaístas acreditavam que éramos providos de um sexto sentido tão aguçado que éramos capazes de prever até avalanches e nevascas com horas preciosas de antecedência. Não é o máximo?

No início, quando o mundo começou a tomar conhecimento de nossa existência, por volta de 1.500 d.C., nos vender era um grave sacrilégio. Só podíamos ser dados como presente, e, requinte dos requintes, somente para altos dignitários e máximas autoridades políticas. Sermos recebidos como presente era considerado que o presenteado era tido em extremo apreço. Toda essa deferência dava-se em reverência à nossa posição dentro da religião lamaísta da época. Éramos considerados seres sagrados. Os lamaístas acreditavam que éramos a reencarnação de antigos Lamas, os Iluminados líderes espirituais dos tibetanos.

Para complementar esse breve introito sobre a história da minha linhagem, faz-se necessário dar conhecimento de como começou a expansão da minha linhagem a partir do mítico Tibete.

Por volta do século XIII, o meu amado país de origem foi invadido pelo ignóbil e sanguinário Genghis Kahn. Quando o invasor morreu, em 1227 d.C., o meu país parou de pagar os extorsivos impostos para os mongóis, o que levou o não menos sanguinário Príncipe Godan, filho e sucessor do Kahn, a ordenar nova invasão, convocando para tal fim com a incumbência de oficializar a total rendição do Tibete, um mestre da escola Sakya, monastério budista e tibetano, mas o mestre converteu o Príncipe e seus súditos ao budismo e posteriormente ao lamaísmo, uma vertente do budismo. Essa conversão garantiu parte da nossa autonomia e fortaleceu os laços comerciais entre os dois impérios e assim, meus ancestrais começaram a serem presenteados aos altos dignitários mongóis; posteriormente com o estabelecimento e fortalecimento comercial com o Império Chinês, nos tornamos requintados presentes para Imperadores, Imperatrizes e Mandarins.

Sucederam-se levas de dominadores no Tibete, incluindo missionários portugueses e outros povos europeus. Até que por fim, no início do Século XIX d.C., os ingleses invadiram o meu amado Tibete, foi quando os bárbaros impassíveis, realmente tomaram conhecimento de nossa existência, e então, no início dos anos 1930 fomos brutalmente arrancados do nosso lar e levados como reles souvenires para a cinzenta Londres, capital da Inglaterra, país dos bárbaros invasores de casacas vermelhas. A partir daí o Ocidente passou a nos conhecer, e claro, nos admirar. Sem falsa modéstia... Não sejamos hipócritas, se me faz o favor.

Posteriormente chegamos aos Estados Unidos nos anos 1933 pelas mãos do próprio Dalai Lama; ao Brasil, chegamos em 1966 ao Estado do Paraná, e de lá, após sucessivas gerações, eu, o Sócrates, cheguei ao lar do meu amigo e da esposa dele.

“Toda essa trajetória de migração não aconteceu por acaso. Estava escrito que as rocas que fiam as linhas do destino, um dia, inexoravelmente, uniriam os fios de nossas vidas para caminharmos juntos. Sou oriundo do Lamaísmo, esqueceu?”

Dado ao nosso tamanho, pequeno, porém robusto, nossa perspicácia, inteligência e temperamento tranquilo, somos cães de companhia por excelência.

Eu adoro o meu amigo e a esposa dele... Eles e a família deles.

Aliás, a filha dos meus amigos, uma loira um pouco estabanada, tem como amiga e companheira inseparável uma congênere minha, uma canídea da linhagem Shih-Tzu, linhagem que eu, claro, ajudei a desenvolver. Mas, isso é história para outra narrativa.

No início deste relato eu informei que vender-me era considerado o maior dos sacrilégios. Pois bem! Eu fui comprado pela filha dos meus amigos, a tal loira estabanada... Aquela...! A amiga da Shih-Tzu... Lembra-se? Então...! Ela comprou-me e, aí sim, cumpriu-se a tradição. Ela deu-me de presente para o irmão caçula dela. Lembra que dar-me de presente era uma grande demonstração de apreço?

Pois é! Ocorre que o mancebo, em início de carreira, trabalhava muito e quase não tinha tempo disponível para dar-me a devida atenção, a qual, por nobre direito, tem que ser a mim dispensada. Não dei muita importância para o fato em razão de uma das mais incríveis características da minha índole.

“Eu, somente eu, é quem escolhe quem eu quero para ser meu amigo ou meu “dono”, como você preferir, aliás, uma característica de outro congênere meu, o Akita, um canídeo de linhagem japonesa. Muito sistemático e nobilíssimo também”.

“Eu ESCOLHI o meu amigo, ESCOLHI ele e sua esposa como os meus diletos companheiros. Em retribuição ele concedeu-me o direito de exercer a antropomorfia, sem o que, eu não poderia nunca, jamais, relatar este breve histórico de minha vida”.

Continuando...

Eu nasci no Estado do Paraná, especificamente em Londrina, e depois, com mais ou menos uns três a quatro meses de idade levaram-me para Ji-Paraná, uma cidade no interior do Estado de Rondônia, onde fui adquirido pela simpática e amorosa loira estabanada, a filha dos meus amigos.

Logo depois fui levado para Porto Velho, capital do Estado, onde residi por alguns anos. Posteriormente os meus diletos amigos mudaram-se para João Pessoa, capital do Estado da Paraíba. Aí a minha vida mudou, radicalmente, e para melhor.

Na aprazível cidade praiana de João Pessoa, o meu cotidiano é tranquilo e agradável. Pela manhã, lá pelas seis ou sete horas, solto longos suspiros, às vezes espirro baixinho. Esses ruídos servem para acordar os meus amigos. Aí, um deles, invariavelmente a esposa do meu amigo, abraça-me carinhosamente e depois coloca-me em cima da cama para eu acordar o meu amigo. Esse é o momento que eu mais gosto porque dou longas lambidas na orelha dele para acordá-lo. Algumas vezes ele acorda rindo e depois abraça-me tão apertado que quase me deixa sufocado, outras vezes, com muito sono ainda, ele se esconde debaixo das cobertas e então, eu fico pulando por cima dele, de um lado para outro. E aí, não tem jeito, ele acorda e brinca um pouco comigo... Não é legal???

Depois das abluções dos meus amigos, saímos para o nosso passeio matinal pelas ruas do bairro, em algumas vezes vamos caminhar na Praia do Bessa. Adoro.

Ao final do passeio matinal cada um vai cuidar dos seus afazeres, minha amiga cuida das coisas do apartamento, dá alguns telefonemas, assiste TV ou liga o “notebook” e vai navegar na internet. O meu amigo quando não tem outros compromissos, invariavelmente ele lê ou escreve. O meu amigo é “escrevinhador”, sabe? Claro, definição dele, não minha. Quanto a mim, é lógico, depois de comer o meu ‘breakfast’ fico por ali, observando-os; outras vezes o meu amigo brinca comigo... Corremos um atrás do outro... Depois vou meditar... Quem não me conhece jura que eu estou dormindo, mas eu garanto de patas juntas, não estou dormindo... Estou m e d i t a n d o!

“Lembrei-me de um fato marcante da minha índole, a educação”. “Isso mesmo, meu caro, minha cara”. “Por exemplo, jamais faço as minhas necessidades fisiológicas no meu apartamento, faço na rua”. “Percebi que você fez cara de asco, fica tranquilo, o meu amigo, sujeito consciente, sempre recolhe os dejetos”. “Também demonstro educação quando recebemos visita". "Invariavelmente, apanho um brinquedo ou o meu ossinho e ofereço para a visita”. “Você nem imagina o espanto que esse gesto simplório causa”. “O meu amigo acha hilário”.

O dia transcorre com todos os seus momentos cotidianos e inesperados, afinal, estamos vivendo a vida. Ao fim do dia, lá pelas dezesseis e trinta ou dezessete horas, vamos os três, fazer caminhada nos calçadões de algumas das praias urbanas que embelezam Jampa.

“Estranhou a liberdade de expressão, JAMPA?” “Não devia...!” “Não existe SAMPA, para São Paulo?” “BELÔ, para Belo Horizonte?” “Então...?”

Às vezes caminhamos na Praia do Bessa, perto do nosso apartamento, outras vezes caminhamos na Praia de Manaíra, minha preferida; em outras, caminhamos na Praia de Tambaú ou Cabo Branco. Nessas caminhadas andamos em torno de mil e quinhentos a dois mil metros. Precisamos manter a forma física, eu e meus amigos.

“Sim...?” “O quê?” “Não! Não! Não só caminhamos nos calçadões, algumas vezes os meus amigos levam-me para tomar banho de mar, o que me deixa muito feliz. Adoro o mar, adoro nadar. Correr à beira-mar, então...! Sentir o vento batendo no meu focinho, acariciando minha língua quando estou transpirando... Esvoaçando meus abundantes pelos... Senhoras... Senhores... Essa sensação não tem preço”.

“O quê?”

“Se minha vida é sempre assim, um mar de rosas? Não! Claro que não! Tem as vacinas... Sim! As doloridas vacinas... São tantas... Estou quase preenchendo a segunda cartela de controle de vacinas”.

“Tem também os acidentes de percurso, tipo doenças. Um tempo atrás contraí uma moléstia muito grave, bem horrorosa, a Erliquiose, a ‘Doença do Carrapato’. Os meus amigos ficaram muito preocupados com a minha saúde, na verdade, desesperados. Eu também! Sei que eles não tiveram culpa. Eles sempre fazem uma completa vistoria em todo o meu corpo após os nossos passeios. Todo e qualquer parasita que eles encontram, eles retiram e colocam remédio no local onde fui picado. Fazer o quê, não é mesmo? Fatalidades acontecem”.

“Espera aí...! Lembrei-me de outro fato”. “O meu amigo, também adoeceu e ficou hospitalizado na UTI por alguns dias. A família dele, que também é minha, ficou muito preocupada... Eu também!” “Lá no hospital, colocaram uma peça de metal dentro do coração dele, um tal de ‘Stent Famacológico’, ele ficou cem por cento e agora está tudo bem”.

Tem os meus banhos. Sim senhor! Tomo banho uma vez por semana com shampoos e condicionadores especiais e faço hidratação da minha pelagem uma vez por mês, e, ao contrário do que registrei no início deste relato, a minha pelagem não é áspera como a pelagem das ovelhas.

A minha pelagem, em razão dos tratamentos cosméticos é macia e sedosa. Sim senhor... Sim Senhora...! Sou fino e elegante. Esqueceu que eu sou um nobre?

“Sei!”

“Sei o que você está pensando...” “Esse cachorrinho ou ‘cãozito’ como sou carinhosamente chamado por meu amigo, além de ‘marrento’, vive numa mordomia tremenda”.

“Vivo mesmo!” “Tem uma vizinha da minha amiga que diz que até para ser cachorro tem que dar sorte”. “É verdade... Eu tenho muita sorte mesmo, não vou negar... Negar para quê? Somente para demonstrar falsa modéstia?”.

Você deve estar muito curioso para saber por que o meu nome é Sócrates. Bem... É uma história bem simples... No princípio, dado o meu comportamento aristocrático, mesmo que ainda filhote e inconsequente, o meu amigo quando estava procurando um nome apropriado para mim, ele pensou no Sócrates, aquele filósofo da Grécia clássica. Lembra-se dele?

Pois então...! O filho dele, o mancebo, recorda-se? Corinthiano – com ‘th’ mesmo, afinal, corinthiano da gema grafa-se assim - extremado achou que não, que o Sócrates em questão teria que ser o jogador, ídolo da Fiel Torcida.

Também gênio, só que do futebol. E olha que para ser considerado gênio do esporte bretão em um país como o Brasil, que é Tetracampeão Mundial da modalidade, o indivíduo tem que ser bom... Mas muito bom, mesmo... Esse Sócrates, o paulista, não o grego, estava de bom tamanho... Estava à altura da minha estirpe.

Hoje o Sócrates, o paulista, está fazendo companhia ao seu congênere grego. Estão ao lado dos seus respectivos ancestrais.

Finalizando...

“O quê?” “Sim...! Sim...! Concordo em gênero, número e grau!” “Claro!” “Toda a mordomia que eu recebo poderia muito bem ser direcionada para uma criança abandonada. Claro!” “Você tem toda a razão, porém, não vou discutir o mérito da questão”. “Sabe por quê?” “Porque cada um recebe o seu quinhão da vida, do seu destino”. “O meu amigo, sozinho, não pode consertar o mundo e as mazelas contidas nele, mas pode minimizar os seus males”. “Para tanto, o meu amigo, não precisava, mas fez”. “Autorizou um débito automático em seu cartão de crédito a favor da AACD e mensalmente doa uma cesta básica para a igreja entregar para uma família carente. É pouco eu sei, mas ele está tentando fazer a parte dele”. “Sabe aquela história do passarinho que carregava água no bico para apagar o incêndio na floresta? Pois é! É por aí”. “Sabe como é, né?”. “Nem todo mundo é Iluminado como a Madre Tereza de Calcutá ou a ilustre e saudosa senhora Zilda Arns, ou mesmo, o Dalai Lama”.

Então...! Esse sou eu, o Sócrates. Um canídeo de pelagem preta e branca, ou branca e preta; de olhos negros, profundos, enigmáticos, e com uma capacidade enorme de amar... E ser amado... Incondicionalmente.

“Eu sou o Sócrates”