Salvo Por Um Acidente.

Domingo de manhã chuvosa, numa dessas estradas do interior de São Paulo, eu fazia o trecho Cuiabá – Presidente Prudente. Resolvi sair cedo de Cuiabá. Não tinha muita pressa, poderia chegar que hora fosse ao destino. Aliás, eu, apesar de adorar carros, jamais fui chegado a velocidade. A vida estava no seu auge, eu adoro estradas e podia, naquela manhã de chuva, sentir o sangue fluir pelas veias. Mesmo na chuva, a não ser que seja um pé d’água, eu nunca curti ficar com os vidros totalmente fechados. Vidros sempre fechados, principalmente em estradas, tira sua sensação de liberdade e o vento não pode bater na sua cara, não tem graça alguma.

Naquela manhã eu estava com os vidros semi-abertos e podia ouvir o som da amena chuva, da música que tocava e ousava a trocar as marchas ouvindo apenas o som do motor. Há tempos não experimentava a liberdade tão intensamente. Numa dessas descidas enormes, duas pistas indo e duas voltando, um acostamento tão grande que parecia outra pista. Isso sempre foi uma imagem agradável pra mim, e agora tudo isso me parecia só meu. Nenhum carro vinha no sentido oposto e pelo retrovisor também não se via nada. Estava no máximo a uns 80 quilômetros por hora e a apenas 10 do destino, quando, do nada, uma aquaplanagem me surpreende.

O carro inicialmente rodopiou pro lado esquerdo e saiu deslizando na pista, como quando se joga um sabonete num piso molhado de ladrilho.

Depois de sei lá quantas voltas rodando, e ainda na pista, ele resolveu mudar a coreografia; dar cambalhotas, como as que os artistas de circo o fazem. A frente e a traseira se achatavam um pouco mais sempre que se chocavam contra o asfalto. Finalmente ele resolveu sair da pista. Chegou no acostamento e, assim como fazem os suicidas, despencou ladeira abaixo comigo dentro.

Era íngreme e cheia de pequenos arbustos a descida. Solavancos bruscos me jogavam de um lado ao outro do carro. E enfim ele parou.

Diagnósticos futuros mostraram que eu dormi por – não se sabe quanto tempo – dentro do carro, depois dele parado. Quando acordei, estava consciente e sabia o que tinha acontecido. Tocava no rádio uma música estranha com o volume altíssimo. A chuva tinha aumentado na mesma proporção de meus batimentos cardíacos. Senti que o carro ainda estava ligado, com as rodas ainda em movimento e o cheiro de gasolina tomara conta do ambiente. Mesmo que tentasse, eu não conseguiria alcançar a ignição para desliga-lo. O medo pairava dentro do velho Pointer. Se eu tivesse morrido ali, só me achariam depois de longos dias. Ninguém presenciou aquilo e o carro estava escondido.

Minha primeira reação foi a de, a qualquer custo, sair o mais rápido possível de dentro do carro. Eu estava na posição horizontal, deitado, com o teto do carro encostado no meu nariz. Quando na última capotagem, o meu banco se quebrou e o encosto da cabeça foi lançado pro banco de trás. Isso me salvou. Acontece que eu ainda estava dentro do carro e as chances dele pegar fogo ou de explodir era eminente. Como noventa por cento do meu corpo estava no banco de trás, pensei em quebrar o vidro da porta traseira do lado direito. Consegui, depois de um zilhão de infinitos minutos, me virar e dar um chute, em vão com um dos pés no vidro. Nada aconteceu, e o cheiro de gasolina aumentava e pude também perceber que a aceleração idem.

Resolvi dar o chute com os dois pés. Concentrei todas as minhas forças, usei a porta do lado esquerdo como apoio e pá! O vidro se quebrou. Sai como pude de dentro do carro. Depois pude constatar que tal chutes foram desnecessários, a porta estava aberta, era só eu abrir normalmente pelo lado de dentro. Mas não se pensa nessas horas. A chuva tinha aumentado, e muito. O barulho da chuva, junto com o do motor e daquela música, até hoje me seguem como uma nota do além. O carro estava totalmente destruído e sem uma das rodas. Nada nele era mais original. O teto descera até onde se inicia o banco. Se o banco não tivesse quebrado, meu pescoço tinha-se ido. Meu problema agora era chegar na pista pra pedir socorro e, desta vez, fazer o caminho de volta.

Enquanto voltava, pude perceber que o motor desligara sozinho, e com ele, aquela indescritível música. Vez por outra eu olhava pra traz e o via, como numa despedida agradecida. O velho amigo Pointer podia agora desmoronar de vez ladeira abaixo ou se incendiar, eu estava vivo. Eu subia com dificuldade, queria ficar longe do carro o mais rápido possível, por isso gastei muita energia e por instantes tive que me deitar na relva, olhando a chuva que vinha do alto. Consegui segurar nuns arbustos como cipós e isso me ajudou a chegar mais rápido na estrada.

Quando cheguei a paisagem era a mesma. Duas pistas indo e duas vindo, dois acostamentos enormes e nenhum carro naquela manhã de domingo. A chuva aumentara mais ainda, e com ela, relâmpagos e trovões clareavam as negras pistas. Mas isso não era mais problema pra mim. Parecia ser 10 da noite. Qualquer carro que viesse tinha que estar em baixa velocidade e como os faróis acesos - altos. Sempre fui hiperativo e – como lobos na matilha - nesse momento eu estava andando em círculos no acostamento a espera de ajuda. Menos de 10 minutos de espera e, do lado oposto da pista, do nada, aparece um desses caminhões estranhos, enormes, com o pisca alerta ligado. Enfim, pensei. Mas não me lembro de ter dado sinal algum pra ele parar. Aliás, eu nem o tinha visto vindo. Mas ele parou como se soubesse.

Fiquei imóvel por alguns momentos. Eu agora estava parado num acostamento e ele no outro. Eu tinha que atravessar a rua e chegar até ele ou ele fazer o mesmo. O barulho da chuva era enorme e nem pensei em gritar alguma coisa. Quando estava me preparando pra dar o primeiro passo, ele buzinou e abriu o vidro. Colocou o braço pra fora e fez com a mão sinais pra que eu não atravessasse as pistas. Nesse momento, passou pela minha frente, em altíssima velocidade, um carro de passeio que eu não teria visto. Eu seria atropelado, não fosse ele ter me avisado. Ele abriu o vidro apenas pra colocar a mão pra fora e não pude identificar a pessoa que estava dentro do caminhão. Eu não sabia o que fazer, então dei sinal a ele de obrigado e que iria sim ao seu encontro. Nesse momento estávamos conversando através de gestos e eu tentava explicar o que tinha acontecido.

Enquanto eu gesticulava, pude ver que aos poucos ele abria o vidro. Meus óculos tinham ficado com o Pointer. A chuva não ajudava em nada a visibilidade. Senti por um breve instante um zoom que se abria entre meus olhos e aquele homem dentro do caminhão. Apesar da distancia, agora eu o podia ver como se estivesse ao meu lado. Aparentava uns 70 anos ou mais e me parecia muito familiar. Eu não gesticulava mais, não precisava, e nem conseguiria se quisesse. Ele parecia poder falar comigo, e falou. Mesmo com a distancia de quatro pistas e embaixo de uma chuva torrencial, ele não gritou, falou calmamente, e eu pude ouvi-lo como se estivesse falando ao meu ouvido:

- Liga não, daqui a pouco vem ajuda.

Ligou o caminhão, e se foi.

Eu não pensava mais em acidente, incidente, pointer, chuva, em mais nada. Eu não esperava mais ajuda – talvez nem quisesse mais - eu não esperava mais nada. Fui envolvido por uma paz inexplicável. As circunstancias de como foram ditas aquelas palavras me fizeram, a partir daquele momento ver as coisas de outra forma. É como se ali, naquele momento eu tivesse renascido pra outra “dimensão”, outra realidade, outra vida, não sei. O que sei é que eu agora estava ali, parado ainda e pude ver que a chuva acalmara, e com ela o transito começou a fluir. Dois minutos se passaram e um carro de Bombeiros e um da Policia vieram me socorrer, vindos do mesmo lado de onde viera o velho do caminhão.

No futuro eu resolvi não relatar sobre o “velho do caminhão” nesse incidente, com medo talvez, das pessoas relacionarem isso com o fato de eu ter dormido muito tempo dentro do carro e talvez, ter visto coisas. Policiais disseram que chegaram a mim porque um velhinho com um caminhão tinha lhes informado a duas horas atrás. Mas há duas coisas que são incontestáveis: 1 - Eu não pedi ajuda a ninguém. 2- O homem do caminhão não viu o acidente. Exames médicos mostraram, na época, que eu ficaria por muito tempo com sequelas. Nasceu um tumor do lado esquerdo do cérebro. Mas constatou-se benigno com o decorrer do tempo. O máximo que me ocorrera vez por outra era esquecer totalmente de coisas tipo onde estava, quem eu era, uma amnesia temporária. Mas isso melhorou com o tempo. Depois, com o tempo comecei a me esquecer das coisas que me faziam infeliz na vida. Remorso, rancor, lembranças ruins, nada disso fazia mais parte da minha vida. Mesmo depois da pericia, me nego a acreditar em meu salvamento baseado na tese do banco quebrado. O que me salvou foi um “senhor” desconhecido pra mim, num caminhão velho, num dia de chuva.

Hoje me acostumei com o cheiro de gasolina, até gosto. Aliás, não sei se gosto mais do cheiro de gasolina ou de tomar banho de chuva. Incrível como há pessoas que não gostam de chuvas. Incrível também o que ocorre com pessoas que por ter passado por um acidente, ou não andam mais de carros ou se esquivam disso ou daquilo e tendem a ficar deprimidas ou angustiadas. Moro numa região tropical, o calor é intenso e raramente chove. É complicado explicar as pessoas o porquê que ando com os vidros do carro abertos, principalmente quando chove. Outro dia meu carro molhou-se todo por dentro, e eu idem. Veio alguém me dizer que mofa e que fica fedido o carro. Mas isso só faria sentido se chovesse todos os dias. E não é todo dia que chove, o que é uma pena. E não é todo dia que vem alguém que, olhando nos seus olhos lhe diz - Liga não, daqui a pouco vem ajuda.

GersonRsilva
Enviado por GersonRsilva em 03/06/2012
Reeditado em 03/06/2012
Código do texto: T3703415
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