Eu, minha esposa e três holandeses

Manfred, Van der Bergen e Blijboon, três holandeses que faziam estágio no Centro de Pesquisa do Cacau, em Itabuna, Bahia. Desengonçados, mas com experiência bastante no enfrentamento de dificuldades em aventuras. Os três já estiveram na Índia, na África, no Japão, na Indonésia e em outros Países dos quais não me lembro do nome.

Era o ano de 1973, os originários dos países baixos, que faziam graduação em agronomia em Wageningen, cidade tipicamente universitária localizada na Província de Gelderland, a maior da Holanda, que tem como capital a cidade de Arnhem, vieram para o Brasil pela curiosidade que nosso país despertava e desperta entre os povos da Europa, e pela oportunidade de desenvolverem trabalho acadêmico em um dos principais centros de pesquisas sobre agricultura tropical. Souberam da existência do Centro de Pesquisa do Cacau da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira – Ceplac, e do excelente trabalho na área agronômica, principalmente em relação ao cacau, por ser seu País o principal moageiro de cacau do mundo, com mais de 400 mil toneladas-ano, equivalentes a 14% das moagens mundiais.

Manfred foi lotado na Divisão de Solos, para realizar trabalhos de pesquisa sobre fixação de nitrogênio no solo sob diferentes condições de manejo. Van der Bergen foi para a Divisão de Fitopatologia e Blijboon na Divisão de Genética.

Minha aproximação do Manfred se deu porque eu desenvolvia minhas atividades profissionais no laboratório de solos, ajudei-o bastante para o seu bom desempenho como estagiário. Ficamos amigos de verdade.

Certo dia os três holandeses me convidaram para conhecer uma gruta que a Ceplac acabara de mapear, próximo da cidade de Canavieiras, Bahia. Eu tinha a condução, daí o convite. Acertamos tudo e no sábado eu os apanhei em Ilhéus, onde eles estavam morando. Paramentados com cordas, picaretas, calçado típico de alpinista, máquina fotográfica, pequena barraca de lona, cobertor, duas garrafas térmicas, água e café, e várias lanternas. Faltaram os capacetes, instrumento de proteção de uso obrigatório nos dias de hoje para atividades desse tipo.

Chegamos a Canavieiras, procedente de Ilhéus, depois de percorrer pouco mais de 120 quilômetros pela BR 101, que se encontrava em péssimas condições de trafegabilidade. Na cidade, procuramos saber onde ficava a gruta dos evangélicos, pois ficamos informados de que componentes dessa religião promoviam cultos no salão de entrada dessa gruta. A resposta nos indicou que ela ficava em Santa Luzia, e que deveríamos pegar a BA 279 percorrer, em estrada de barro 13 quilômetros, até encontrar um pequeno povoado conhecido pelo nome de "Arriba Saia", porque ali havia muita lama e as mulheres precisavam levantar as saias para andar no lamaçal. Lá alguém indicaria o caminho certo. Tivemos que deixar o carro na estrada a um quilômetro da entrada da gruta e andamos o restante do trajeto a pé. Já eram quase 4 horas quando avistamos seu paredão de 40 metros de altura e a grande fenda que dava acesso ao salão principal da gruta.

Naquele tempo essa gruta ainda não era explorada pelo ecoturismo como hoje. No seu interior encontramos alguns bancos de madeira, uma espécie de tablado, para uso nos cultos, e restos de galhos de árvores semiqueimados, indicando que ali se faziam pequenas fogueiras, possivelmente para cultos noturnos, pois a caverna fica totalmente escura a meros 50m da entrada para outros compartimentos.

Já cansados, nos acomodamos para dormir sobre o tablado de madeira. Antes tomamos café e comemos sanduíche de queijo com mortadela. Fazia um pouco de frio e os cobertores trazidos pelos neerlandeses couberam como uma luva. Quando já estávamos preparados para aquela dormida, pois pretendíamos acordar cedo para penetrar no interior da gruta o mais cedo possível, apareceu uma senhora, parecia índia, que veio perguntar o que estávamos fazendo ali.

Depois de se inteirar sobre nossas intenções, ela, bastante preocupada, passou a relatar que algumas pessoas entraram naquela caverna e nunca mais voltaram. Aconselhada a não ficar preocupada, a mulher se foi. Agora éramos eu e Uilma que estávamos preocupados, já que pela primeira vez enfrentávamos uma parada como aquela. Para nos acalmar, eles disseram que sabiam o que estavam fazendo.

A dormida foi tranquila, acordamos às 7 horas, já domingo, tomamos café e iniciamos nossa tarefa de exploração da gruta, levando os apetrechos de escalada e lanternas. Eles levavam duas, cada um. Para mim uma e para Uilma também uma lanterna. Experimentamos descidas íngremes, subidas, travessia de abismo e galerias estreitas formadas por pedras pontiagudas, muitas vezes tínhamos que rastejar para ultrapassá-las, outras vezes alargá-las com picareta, uma ou duas passagens mais fechadas. Atravessamos também bancos de areia fina, arenitos, lavados pela água que escorria constantemente por algumas fendas e salões de aproximadamente 120 metros de comprimento e alguns pontos com 60 metros de altura, ostentando belas formações de estalactites e estalagmites, que explodiam em cores diversas ao direcionarmos a luz sobre elas. Grandioso espetáculo para os nossos olhos.

No meio da caminhada encontramos morcegos, inscrições nas paredes da gruta e também um riacho, que atravessava fendas abertas pela sua passagem, emitindo som característico de quedas-d’água. Não conseguíamos vê-lo, já que ele corria em ambiente profundo, escuro e nem mesmo a luz da lanterna possibilitava visualizá-lo.

Já estávamos subindo e descendo por mais de três horas. Ao chegar a um platô, formação rochosa em forma de laje, não foi possível continuar a exploração, não havia ou não percebemos caminho a seguir. Paramos para descansar e Van der Bergen resolveu registrar o momento, preparando sua máquina fotográfica sobre um tripé, para que ele também saísse na foto. Ao verificar que a distância entre a máquina fotográfica e o grupo já devidamente colocado em pose para a foto não lhe caberia, deu duas passadas para trás arrastando o tripé. Desequilibrado, ele caiu de uma altura de mais ou menos dez metros. Com ele a máquina fotográfica, o tripé e as suas duas lanternas, que deixaram de funcionar.

Manfred começou a chamar Van der Bergen, silêncio total, lá embaixo, escuridão total. Muita aflição entre nós. Passados alguns momentos ouviu-se um ai baixinho, depois mais forte. Manfred se preparava para descer. Amarrou as três cordas uma na outra e iniciou a descida. Ele não sabia que elas seriam suficientes para alcançar o amigo, não tinha ideia da distância. Ao chegar ao fundo do abismo, verificou que ele estava ferido, mas não muito grave. Com o tripé e minha japona, jaquetão de pano grosso, usada para proteger do frio, e corda, foi improvisada uma maca. Amarrado nela, Van der Bergen foi içado, sendo puxado por mim, Uilma e Blijboon. Manfred orientava a subida. Depois foi a vez de ele subir. O drama começava. Como levar Van der Bergen até a saída? Já havíamos perdido muito tempo e duas lanternas. Ele deveria ser carregado, o caminho nosso conhecido, bastante perigoso e difícil. Mas não havia outro jeito. Passos mais lentos do que na vinda.

Manfred orientou-nos para economizar energia das pilhas, uma lanterna acesa com o primeiro da fila, andávamos em fila indiana, e outra com o último, que era eu. Quando era possível andar apenas com uma lanterna acesa, era assim que fazíamos. Experimentamos apagar as lanternas, não enxergávamos um palmo a nossa frente, havia o perigo de um escorregar e cair no abismo, levando os outros, pois estávamos amarrados uns aos outros. Pouco depois acabou a pilha da lanterna de Manfred, ele acionou a última lanterna que carregava, a preocupação e o medo aumentaram. Por precaução peguei a lanterna da Uilma, que não estava sendo usada e escondi no bolso da calça. Eu pensava, é com essa que vamos sair daqui. Pensava em nossa filha Roberta, de apenas um ano, que ficara com a avó em Itabuna. Um escorregão do Blijboon levou mais uma lanterna para o abismo, ele quase ia junto, e todos nós. Sua experiência nesse tipo de terreno o ajudou bastante, e a nós também. Pouco tempo depois foi a pilha de minha lanterna que apagou. Passei a usar a de Uilma. Agora só contávamos com duas lanternas, a carregada por mim e a de Manfred, já muito fraca. Baixinho, eu e Uilma rezávamos pedindo a Deus para nos tirar daquela enrascada. Os holandeses continuavam calmos, Manfred carregando Van der Bergen na maca improvisada, puxando-o por uma corda amarrada em sua cintura. Eu e Uilma em pânico!

Depois de quase cinco horas de caminhada, avistamos a fenda de entrada. Parecia a porta do céu. Ainda estava claro lá fora, e a luz que entrava por essa fenda era a nossa salvação. A lanterna que eu carregava estava nas últimas. A luz externa já iluminava completamente nossos passos. Ao chegarmos ao salão de entrada, encontramos a mulher índia e mais três ou quatro pessoas já orando por nós. Quando eles nos avistaram, começaram a gritar Aleluia! Aleluia! Aleluia! Abraçavam-nos e pulavam demonstrando bastante alegria por nos ver sãos e salvos. Não conhecíamos aquelas pessoas, mas elas nos tratavam como irmãos.

Já fora da gruta eles queriam saber o que aconteceu, por que o irmão estava ensanguentado e com a cabeça enfaixada. - Uma queda, respondeu um dos holandeses. De dez metros de altura, a felicidade foi ter caído em um banco de arenito. Só acho que quebrei algumas costelas, completou Van der Bergen.

Descansamos um pouco, tomamos um café frio com biscoito, sobra do café da manhã e partimos. O solo estava bastante encharcado, fruto da chuva que caiu o dia todo e continuava a cair. Tínhamos um quilômetro para chegar ao carro. A cena nos entristeceu, o carro estava completamente atolado no barro vermelho que descera pela encosta do morro, só um reboque ou um trator o tiraria daquela condição.

Tivemos que andar mais um quilômetro, debaixo de chuva forte, para chegar até a estrada e pegar uma carona. Passou um caminhão carregado de laranja, que ia para Itabuna, subimos para ele, nos acomodamos sobre as laranjas e sob a lona que as cobria. Foi uma volta tranquila. Na segunda ficamos sabendo que Van der Bergen havia quebrado exatamente três costelas e iria ficar hospitalizado por mais de uma semana. Meu carro só fui buscar na quinta-feira, depois que se passaram três dias sem chover.

Hoje, tudo lá é diferente, ao visitar Santa Luzia você vai encontrar o Centro Ecoturístico do Lapão, contar com a ajuda de guias locais e toda infraestrutura necessária às necessidades de cada turista. O Sitio Espeleológico da Bacia Metassedimentar do Rio Pardo se constitui de aproximadamente 16 grutas, e a que visitamos, me parece, pelas pesquisas que fiz na internet, continua nas mesmas condições que encontramos naquela ocasião. Abandonada, quase sem visitas.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 29/05/2012
Reeditado em 15/08/2012
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