NOITE DE SONHO

O luar a inquietava imensamente. Compenetrada, observava as imperfeições da lua, que proporcionava a perfeição do brilho daquela noite longa e calma. As estrelas eram poucas, ela estranhava. No passado, foram tão numerosas e hoje... pensou que poderia contá-las. Discretamente, começou a apontar uma a uma na tentativa de chegar à quantidade exata delas. Desistiu quando chegou ao número cento e cinquenta e sete.

Sentiu uma vontade tão grande de ler a Bíblia, mas não sabia onde havia deixado o exemplar que ganhara fazia pouco tempo. Pensou em como seria bom encontrar um verdadeiro amor, conseguir a sensação de calor naquela noite fria. Trouxe da memória a imagem masculina mais impressionante que já tinha visto. Era incrível, terno impecável, sapatos lustrosos, gravata vermelha - nunca esqueceria - com listras azul-marinho, sobretudo e cachecol, cabelos pretos lisos, levava uma valise e andava apressadamente, com aquelas pernas longas - devia ter um metro e meio, cada -, como quem não quer perder a hora. Não percebeu que sorria. Estava tranquila, logo pegaria no sono.

Imaginou-se numa cena de um filme clássico que amava - E O Vento Levou. Ficou ali, naquele devaneio, durante o que parecia ser horas. Cada sensação, cada cheiro, cada som de onde era o seu lugar, sua vida, estavam ao seu redor compondo a cena que criava num sonho sem dormir, numa fantasia encantadora. Podia ser rica, podia ser linda, podia ser livre, sentia-se tudo e sonhava com uma história sem desfecho, pois jamais a realizaria. Mas sonhava, nada a impedia, sonhava sempre. Aquele era o seu momento de descanso, de livrar-se do estresse, da correria daquela vida. Não entendia bem o que queria dizer 'estresse' e também não costumava correr, mas ouvia as pessoas usando estas expressões e gostava de imitá-las para se sentir igual.

Ouviu um ruído estranho, diferente de todos aqueles com os quais estava tão habituada. Amedrontada, encolheu-se debaixo do cobertor que fazia questão de nunca se desfazer, pois tinha sido presente de uma amiga, mesmo já não sabendo por onde ela andava, nem se ainda estava viva. O frio parece que aumentou. Quis trancar portas, fechar janelas, ficar embaixo da cama, telefonar para um pai, gritar por um marido ou filho. O barulho estava se aproximando, ela tremia. Ergueu os olhos quando baixou o cobertor para entender o que acontecia. Ele foi visto. Acabou.

Na manhã seguinte, nada foi noticiado. O seu corpo jazia a céu aberto. Aquele mesmo céu aberto que ela contemplara todas as noites, deitada em um canto qualquer do centro da cidade, anônima.

Késia Mota
Enviado por Késia Mota em 27/05/2012
Código do texto: T3690291
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